Desconfio que ninguém sairá do cinema indiferente ao que é mostrado nesse Rua Cloverfield, 10. Na saída da sessão que compareci, por exemplo, ouvi muita gente reclamando do final. Eu, por outro lado, voltei para casa feliz por ter assistido um filme que não tem medo de chutar o pau da barraca em seu último ato. Minimamente, a história contada pelo diretor Dan Trachtenberg dá uma sacudida no espectador quando realiza uma inesperada troca de gêneros cinematográficos em sua conclusão e isso, somado a pontualidade do discurso de empoderamento feminino, são motivos mais do que suficientes para que eu aprove o que vi e indique o filme como uma das boas surpresas de 2016. Texto com SPOILERS.
No início, não há som nem diálogos, mas qualquer pessoa que já vivenciou um relacionamento é perfeitamente capaz de entender o que está acontecendo. Michelle (Mary Elizabeth Winstead) está terminando com o namorado. Mesmo relutante, a personagem empacota seus pertences, olha pela última vez para o apartamento onde eles viveram, entra no carro e pega a estrada. No rádio, notícias de um gigantesco blecaute que atingiu parte da cidade. O namorado liga, ela coloca o telefone no viva voz e ouvimos um homem arrependido implorando para que ela volte. Michelle chora, a ligação é encerrada e… POW! um veículo surge da escuridão, colide com o carro dela e arremessa-a para fora da estrada.
Esse começo é matador. A ideia da colisão repentina passa longe de ser algo novo, mas a ambientação majoritariamente silenciosa que o diretor cria antes do acidente gera um contraste assustador quando o som do impacto explode nos nossos ouvidos. Mesmo escolado nas técnicas de susto hollywoodianas, não pude evitar de contorcer-me na cadeira quando os carros bateram. Na sequência, a tela escurece, a adrenalina começa a diminuir e a gente vê-se completamente imerso na história, doidos para saber o que acontecerá.
Michelle acorda, ferida e acorrentada, dentro de um quarto pequeno. Novamente, cito os contrastes: alguém que estava dirigindo livre à noite, correndo para deixar para trás um relacionamento insatisfatório, de repente vê-se presa e limitada. Vemos então a personagem esforçar-se para conseguir alcançar seus objetos pessoais que estavam no outro canto do quarto e somos levados a acreditar que o filme contará uma dessas histórias de cativeiro, mas aí o diretor dá um jeito de jogar com a nossa imaginação. Howard (John Goodman), o dono daquele lugar, surge e explica para Michelle que o mundo tal qual ela conhecia não existe mais. Os EUA foram alvos de um ataque nuclear (ou alienígena, ele não sabe ao certo) e tudo que existia fora daquele abrigo fora destruído ou contaminado pela radiação.
Convenhamos, é muita informação para uma pessoa que acabou de acordar após um acidente processar. Michelle não acredita em Howard, ataca-o e tenta fugir do local, mas aí ela vê uma mulher morrer do lado de fora do abrigo vítima do que parece ser contaminação por radioatividade. Em seguida, a história contada por Howard ganha mais força ainda: Emmett (John Gallagher Jr.), o terceiro refugiado do abrigo que até então permanecera quieto em um quarto, surge e confirma tudo o que seu anfitrião falou sobre os ataques.
Pronto, está armado o cenário de Rua Cloverfield, 10. Temos 3 personagens presos dentro de um bunker e uma dúvida: a história que foi contada por Howard (e confirmada por Emmett) é verdadeira ou não? Apesar de terem falado em um “gigantesco blecaute” no começo da trama e do espectador saber que o nome Cloverfield evoca o filme homônimo de 2008 (que é sobre uma invasão alienígena), nós, que acompanhamos a narrativa sob a perspectiva de Michelle, não conseguimos acreditar totalmente no que é dito por Howard. Nisso, o trabalho do diretor é fundamental para criar a “cortina de fumaça” que manterá todos confusos e apreensivos até o final. Ao mesmo tempo que Trachtenberg nos mostra um lado quase paternal do personagem, exaltando a preocupação dele com Michelle e Emmett e nos impressionando com todos os cuidados que ele tomou para construir aquele abrigo, o diretor também investe em cenas onde a instabilidade emocional toma conta de Howard e fazem-no parecer um homem louco e perigoso.
Dentre as várias cenas que trabalham a tensão entre os personagens no dia a dia do abrigo, uma é fundamental para entendermos a proposta do filme de resignificar o papel da mulher nesse tipo de produção. Em um determinado momento, Michelle diz para Emmett que, até então, ela sempre ficava paralisada diante de situações de conflito. Quando ouvi o diálogo, não dei muita importância para o que foi falado e até achei a cena meio chata, mas depois percebi que trata-se do início da mudança de um paradigma. Sai a mulher que precisa de um homem para salvá-la de situações de perigo, entra a mulher forte capaz de trilhar o próprio caminho. Tal qual Howard descreve-a no primeiro encontro entre os dois, Michelle é uma guerreira e, nas últimas cenas de Rua Cloverfield, 10, nós vemos o quão afiadas as garras dela podem ser.
Tal qual o Tony Stark no primeiro Homem de Ferro, Michelle constrói uma armadura (na verdade, uma roupa vermelha e amarela com uma máscara antigás rs) e consegue escapar do abrigo. A fuga acontece após uma cena gore em que Howard mata e derrete o corpo de Emmett no ácido para, posteriormente, também ser jogado no ácido pela personagem. Tivesse o filme terminado aí, teríamos uma ótima história de suspense, mas a coisa vai mais longe. De fato, Rua Cloverfield, 10 é ambientado no mesmo mundo de Cloverfield, ou seja, o planeta realmente foi atacado por alienígenas e Michelle terá que enfrentar alguns deles para sobreviver. Foi nesse momento que percebi que o público do cinema torceu o nariz. Num piscar de olhos, o que até então fora conduzido como um suspense transforma-se em uma ficção científica com monstros, naves espaciais e explosões. Numa dessas ideias tão legais quanto mirabolantes, a destemida Michelle consegue salvar-se usando um pouco de fita adesiva e uma garrafa de vinho (!!!) e, na simbólica encruzilhada do final, quando podia simplesmente continuar correndo do problema, ela decide ir atrás dos alienígenas para enfrentá-los.
Ainda que seja normal parte do público argumentar que o final “não tem nada a ver”, isso não é bem verdade. Ao longo de todo o filme, o diretor planta elementos suficientes para justificar a virada e, conforme dito, o próprio título da produção já indicava essa possibilidade. O que vi foi um longa criativo que trabalha a ideia de “monstro” dentro de dois contextos diferentes (Howard não era menos perigoso do que os aliens), acerta ao misturar gêneros e quebra com o mito da fragilidade feminina, ou seja, Rua Cloverfield, 1o é uma experiência cinematográfica completa, gratificante e inovadora.