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Rua Cloverfield, 10 (2016)

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Rua Cloverfield 10Desconfio que ninguém sairá do cinema indiferente ao que é mostrado nesse Rua Cloverfield, 10. Na saída da sessão que compareci, por exemplo, ouvi muita gente reclamando do final. Eu, por outro lado, voltei para casa feliz por ter assistido um filme que não tem medo de chutar o pau da barraca em seu último ato. Minimamente, a história contada pelo diretor Dan Trachtenberg dá uma sacudida no espectador quando realiza uma inesperada troca de gêneros cinematográficos em sua conclusão e isso, somado a pontualidade do discurso de empoderamento feminino, são motivos mais do que suficientes para que eu aprove o que vi e indique o filme como uma das boas surpresas de 2016. Texto com SPOILERS.

No início, não há som nem diálogos, mas qualquer pessoa que já vivenciou um relacionamento é perfeitamente capaz de entender o que está acontecendo. Michelle (Mary Elizabeth Winstead) está terminando com o namorado. Mesmo relutante, a personagem empacota seus pertences, olha pela última vez para o apartamento onde eles viveram, entra no carro e pega a estrada. No rádio, notícias de um gigantesco blecaute que atingiu parte da cidade. O namorado liga, ela coloca o telefone no viva voz e ouvimos um homem arrependido implorando para que ela volte. Michelle chora, a ligação é encerrada e… POW! um veículo surge da escuridão, colide com o carro dela e arremessa-a para fora da estrada.

Esse começo é matador. A ideia da colisão repentina passa longe de ser algo novo, mas a ambientação majoritariamente silenciosa que o diretor cria antes do acidente gera um contraste assustador quando o som do impacto explode nos nossos ouvidos. Mesmo escolado nas técnicas de susto hollywoodianas, não pude evitar de contorcer-me na cadeira quando os carros bateram. Na sequência, a tela escurece, a adrenalina começa a diminuir e a gente vê-se completamente imerso na história, doidos para saber o que acontecerá.

Rua Cloverfield 10 - Cena 5Michelle acorda, ferida e acorrentada, dentro de um quarto pequeno. Novamente, cito os contrastes: alguém que estava dirigindo livre à noite, correndo para deixar para trás um relacionamento insatisfatório, de repente vê-se presa e limitada. Vemos então a personagem esforçar-se para conseguir alcançar seus objetos pessoais que estavam no outro canto do quarto e somos levados a acreditar que o filme contará uma dessas histórias de cativeiro, mas aí o diretor dá um jeito de jogar com a nossa imaginação. Howard (John Goodman), o dono daquele lugar, surge e explica para Michelle que o mundo tal qual ela conhecia não existe mais. Os EUA foram alvos de um ataque nuclear (ou alienígena, ele não sabe ao certo) e tudo que existia fora daquele abrigo fora destruído ou contaminado pela radiação.

Convenhamos, é muita informação para uma pessoa que acabou de acordar após um acidente processar. Michelle não acredita em Howard, ataca-o e tenta fugir do local, mas aí ela vê uma mulher morrer do lado de fora do abrigo vítima do que parece ser contaminação por radioatividade. Em seguida, a história contada por Howard ganha mais força ainda: Emmett (John Gallagher Jr.), o terceiro refugiado do abrigo que até então permanecera quieto em um quarto, surge e confirma tudo o que seu anfitrião falou sobre os ataques.

Rua Cloverfield 10 - CenaPronto, está armado o cenário de Rua Cloverfield, 10. Temos 3 personagens presos dentro de um bunker e uma dúvida: a história que foi contada por Howard (e confirmada por Emmett) é verdadeira ou não? Apesar de terem falado em um “gigantesco blecaute” no começo da trama e do espectador saber que o nome Cloverfield evoca o filme homônimo de 2008 (que é sobre uma invasão alienígena), nós, que acompanhamos a narrativa sob a perspectiva de Michelle, não conseguimos acreditar totalmente no que é dito por Howard. Nisso, o trabalho do diretor é fundamental para criar a “cortina de fumaça” que manterá todos confusos e apreensivos até o final. Ao mesmo tempo que Trachtenberg nos mostra um lado quase paternal do personagem, exaltando a preocupação dele com Michelle e Emmett e nos impressionando com todos os cuidados que ele tomou para construir aquele abrigo, o diretor também investe em cenas onde a instabilidade emocional toma conta de Howard e fazem-no parecer um homem louco e perigoso.

Rua Cloverfield 10 - Cena 3Dentre as várias cenas que trabalham a tensão entre os personagens no dia a dia do abrigo, uma é fundamental para entendermos a proposta do filme de resignificar o papel da mulher nesse tipo de produção. Em um determinado momento, Michelle diz para Emmett que, até então, ela sempre ficava paralisada diante de situações de conflito. Quando ouvi o diálogo, não dei muita importância para o que foi falado e até achei a cena meio chata, mas depois percebi que trata-se do início da mudança de um paradigma. Sai a mulher que precisa de um homem para salvá-la de situações de perigo, entra a mulher forte capaz de trilhar o próprio caminho. Tal qual Howard descreve-a no primeiro encontro entre os dois, Michelle é uma guerreira e, nas últimas cenas de Rua Cloverfield, 10, nós vemos o quão afiadas as garras dela podem ser.

Rua Cloverfield 10 - Cena 2Tal qual o Tony Stark no primeiro Homem de Ferro, Michelle constrói uma armadura (na verdade, uma roupa vermelha e amarela com uma máscara antigás rs) e consegue escapar do abrigo. A fuga acontece após uma cena gore em que Howard mata e derrete o corpo de Emmett no ácido para, posteriormente, também ser jogado no ácido pela personagem. Tivesse o filme terminado aí, teríamos uma ótima história de suspense, mas a coisa vai mais longe. De fato, Rua Cloverfield, 10 é ambientado no mesmo mundo de Cloverfield, ou seja, o planeta realmente foi atacado por alienígenas e Michelle terá que enfrentar alguns deles para sobreviver. Foi nesse momento que percebi que o público do cinema torceu o nariz. Num piscar de olhos, o que até então fora conduzido como um suspense transforma-se em uma ficção científica com monstros, naves espaciais e explosões. Numa dessas ideias tão legais quanto mirabolantes, a destemida Michelle consegue salvar-se usando um pouco de fita adesiva e uma garrafa de vinho (!!!) e, na simbólica encruzilhada do final, quando podia simplesmente continuar correndo do problema, ela decide ir atrás dos alienígenas para enfrentá-los.

Ainda que seja normal parte do público argumentar que o final “não tem nada a ver”, isso não é bem verdade. Ao longo de todo o filme, o diretor planta elementos suficientes para justificar a virada e, conforme dito, o próprio título da produção já indicava essa possibilidade. O que vi foi um longa criativo que trabalha a ideia de “monstro” dentro de dois contextos diferentes (Howard não era menos perigoso do que os aliens), acerta ao misturar gêneros e quebra com o mito da fragilidade feminina, ou seja, Rua Cloverfield, 1o é uma experiência cinematográfica completa, gratificante e inovadora.

Rua Cloverfield 10 - Cena 4

Trumbo – Lista Negra (2015)

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Trumbo - Lista NegraVocê é ou já foi comunista? Faça o teste oficial respondendo a pergunta abaixo:

  • Mamãe faz o seu lanche favorito. Sanduíche de queijo e presunto. Na escola, você vê alguém sem lanche algum. O que você faz? Divide? Diz para ele arrumar um trabalho? Oferece um empréstimo a 6%? Simplesmente o ignora?

Você divide? Ah, sua pequena comunista!

E, com esta brincadeira, Dalton Trumbo (Bryan Cranston) mostra para a filha que ela também é um pouco comunista 😀 Obviamente, trata-se de uma simplificação jocosa, mas, naquela época, em 1947, o famoso roteirista ainda não tinha motivos para tratar com mais seriedade a paranoia de seus conterrâneos contra o comunismo: a 1° emenda da constituição americana garantia a liberdade de expressão e o direito de livre associação para todos. Trumbo não imaginava, porém, que a disputa ideológica entre EUA e URSS acirraria-se nos próximos anos e obrigaria-o a negar a sua própria identidade e convicções políticas para conseguir sobreviver aos terríveis anos em que o macartismo e a Lista Negra de Hollywood assombrariam a vida de quem declarava-se “comunista” nos Estados Unidos.

Trumbo – Lista Negra, longa do diretor de comédias Jay Roach (da série Entrando Numa Fria), é um desses filmes feitos para agradar em cheio os fãs mais dedicados de cinema. Roach recria os bastidores de Hollywood para homenagear a incrível história de um homem que, apesar de ter vencido o Oscar duas vezes (Melhor Roteiro por Arenas Sangrentas e A Princesa e o Plebeu), não pode receber nenhuma das estatuetas. Motivo? Trumbo, que fora condenado por ter ligações com o movimento comunista estadunidense, só conseguia vender seus roteiros através de pseudônimos, logo ele não podia comparecer nas premiações. Não é apenas por essa deliciosa metalinguagem, no entanto, que o filme merece sua atenção: temos aqui uma produção que cumpre o importantíssimo papel de reabrir uma ferida antiga da história norte americana para que as dores provocadas por ela não sejam esquecidas e nem repetidas pelas novas gerações.

Trumbo - Lista Negra - Cena 4Talvez por saber que hoje em dia é difícil falar de comunismo para o público sem despertar uma infinidade de reações boçais, o diretor abre o filme explicando o contexto que estimulou vários americanos a aderirem à ideologia soviética na década de 40. Após a Quebra da Bolsa de NY em 1929 e o período de instabilidade econômica conhecida como “Grande Depressão” que seguiu-se, o comunismo praticado em solo russo surgiu como uma possível alternativa para o capitalismo americano que acabara de dar sinais de esgotamento. Assim sendo, Trumbo e outros tantos roteiristas, atores e diretores de Hollywood filiaram-se ao Partido Comunista Americano. Inicialmente, os direitos civis deles foram respeitados, mas o orgulho nacional recuperado com a vitória na Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria levantaram suspeitas sobre suas atividades políticas. Acusados pelo senador Joseph McCarthy de usarem os filmes para “envenenarem a mente dos americanos”, Trumbo e seus companheiros foram intimados a deporem no senado e, por recusarem-se a “cooperarem” com as investigações, acabaram presos.

Trumbo - Lista Negra - Cena 3Como o verdadeiro foco de Trumbo é abordar as consequências reais da paranoia e da histeria política, tanto esta contextualização quanto a ida do roteirista para a cadeia são mostradas rapidamente. Nos primeiros minutos da trama, o diretor nos leva até festas e gravações de filmes onde é possível perceber a crescente rejeição ao comunismo pela população e pelas pessoas envolvidas com o mundo do cinema. Trumbo é ofendido na frente da própria família por um homem descontrolado e vê a colunista Hedda Hopper (Helen Mirren) e o ator John Wayne (David James Elliott) ajudarem a criar a “Aliança de Filmes pela Preservação dos Ideais Americanos”, uma entidade que lutou pela censura e exclusão dos trabalhos dos comunistas de Hollywood.

O que era e deveria ser encarado apenas como uma divergência política, algo fundamental para o bom funcionamento da democracia, é então criminalizado e Trumbo é enviado para a cadeia. Desnecessário falar dos predicados do Bryan Cranston para quem assistiu a série Breaking Bad, mas quem acha que ele nunca dissociará-se da imagem do icônico Walter White surpreenderá-se com o quão rápido ele nos faz aceitá-lo em outro papel. A última metade do filme exige muito do ator, visto que Trumbo experimenta todo o tipo de alegrias e humilhações (reparem na sensação de impotência absoluta no rosto dele na cena da revista na prisão) que levam-no desde a descrença total até o regozijo da vitória, e Cranston não decepciona, fazendo-nos alternar constantemente entre o amor e ódio pelo personagem.

Pela relevância do tema e pela qualidade do material, considero uma verdadeira bizarrice a pouca atenção dada pela Academia ao filme. Trumbo, que definitivamente não é um veículo panfletário para nenhuma ideologia (o roteiro critica, por exemplo, tanto a hipocrisia dos defensores do capitalismo quanto a falta de praticidade dos comunistas), recria momentos importantes e emocionantes da história do cinema, como as polêmicas que envolveram as filmagens e o lançamento do Spartacus do Kubrick, faz referência a uma infinidade de produções do período (gostei demais de tudo que envolveu o John Goodman e os filmes B) e mostra o poder do exemplo de um homem que, em um momento de dificuldade, apoiou-se na família, nos amigos e no próprio talento para ajudar a derrotar a Lista Negra de Hollywood, episódio vergonhoso e inaceitável da história da indústria cinematográfica (que vergonha, John Wayne!).

Pela justa homenagem que presta ao roteirista, pela defesa que faz da liberdade de expressão e pela divertida jornada através dos bastidores de Hollywood, Trumbo merecia mais do que apenas uma indicação ao Oscar (Melhor Ator pela atuação do Cranston): ao meu ver, ele poderia tranquilamente substituir o A Grande Aposta, o Brooklyn, o Ponte dos Espiões ou o Spotlight na categoria de Melhor Filme. Foram injustos com o roteirista no passado, estão sendo injustos agora com o filme sobre ele: a Academia, pelo jeito, continua receosa com material sobre os “comedores de criancinhas”. Que vergonha!

Trumbo - Lista Negra - Cena 2

Inside Llewyn Davis – Balada de Um Homem Comum (2013)

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Inside Llewyn Davis - Balada de Um Homem ComumLocal pequeno, luz fraca, clima intimista. Sentado em um banquinho, um homem dedilha um violão e canta os seguintes versos: “Me enforque, oh, me enforque, e estarei morto e enterrado/Não me importo com a corda/Descansarei muito tempo na cova/ Pobre de mim, estive por todo o mundo”. Antes que tu tenha tempo para raciocinar sobre o motivo de tal lamentação, o sujeito encerra a apresentação e é alertado pelo dono do bar sobre um amigo que o espera do lado de fora. Llewyn Davis (Oscar Isaac), o cantor, sai então pela porta dos fundos e recebe um soco bem no meio da fuça de um sujeito pouco amigável. Davis, como veremos nas próximas cenas, não é lá um sujeito muito sortudo.

Inside Llewyn Davis – Balada de Um Homem Comum (o subtítulo, obviamente, é por conta dos nossos conterrâneos) é o novo filme de Joel e Ethan Coen, os responsáveis pelos longas Onde os Fracos Não Tem Vez, Um Homem Sério e Bravura Indômita. Considerando o prestígio que os diretores gozam atualmente em Hollywood, com cada um deles tendo recebido 4 Oscars e outras 9 indicações no últimos anos, é deveras normal que o espectador mais antenado olhe com desconfiança para um filme da dupla que, contrariando o que vinha acontecendo, foi indicado apenas a 2 prêmios técnicos (à saber, Melhor Fotografia e Melhor Mixagem de Som). Eu olhei e, olhando, vi um filme estranho, deveras divertido, é verdade, mas ainda assim não muito legal.

Inside Llewyn Davis - Cena 3Quem assistiu os filmes citados no parágrafo anterior já deve ter percebido que os Irmãos Coen, como eles são conhecidos, abordam questões como justiça e acaso de um modo um tanto quanto inconvencional. Se tivesse saído de casa cinco segundos antes ou depois, o assassino interpretado pelo Javier Bardem não teria encontrado o que ele definitivamente merecia em Onde os Fracos Não Tem Vez. Também podemos dizer que o processo de aprendizado que aquele professor de matemática enfrenta em Um Homem Sério poderia ter sido mais fácil e proporcional a seu bom e inocente coração mas, como desgraça pouca é bobagem, os diretores (que, na maioria das vezes, também assinam os roteiros que dirigem) fazem o personagem arrastar-se pela lama no pior dos cenários possíveis antes que qualquer recompensa lhe seja oferecida.

Llewyn Davis é um músico que tenta sobreviver à custa do próprio talento no início da década de 60, cantando e gravando discos de música folk. Acontece que, no período, o que fazia sucesso mesmo eram músicas alegres e descontraídas “a la” Os Beatles, realidade que diminuía o interesse das gravadoras no trabalho de Llewyn e, consequentemente, deixava-o com os bolsos vazios. Perambulando sem lar pelas ruas do Greenwich Village, dormindo ora no chão da sala de um casal de amigos, ora no sofá de um desconhecido, o músico segue tentando permanecer fiel ao tipo de música que ele gosta, mesmo que isso lhe garanta toda a espécie de contratempos.

Inside Llewyn Davis - Cena 2Em um drama tradicional, Llewyn Davis poderia ser retratado como um mártir na luta contra a indústria fonográfica, um defensor do direito de fazer arte pela arte. Nas mãos dos Coen, o personagem é reduzido a um homem comum (olha eu concordando com o subtítulo rs) que possuí talento mas que, ao que tudo indica, não faz a mínima idéia de como usá-lo em benefício ($$$) próprio. Enquanto todos ao seu redor, incluindo o casal de amigos Jean (Carey Mulligan) e Jim (Justin Timberlake) e o professor Gorfein, parecem estar, se não estabilizados, pelo menos progredindo financeiramente com seus trabalhos, Llewyn continua persistindo em algo que, aparentemente, não trará lucro algum. Quando olhamos para a história de um homem que, apesar de todos os esforços, não consegue dinheiro nem para alugar o próprio teto, é natural que o sentimento de compaixão encha nossos corações, mas aí, novamente, lembro-lhes que estamos assistindo um filme de diretores que adoram brincar com as forças do acaso.

Inside Llewyn Davis - Cena 1Inside Llewyn Davis, ao meu ver, está muito mais para uma comédia do que para um drama. Ainda que apresente elementos desse último, sobretudo em seu final (início?) que recorre a um mito da música folk para sugerir que a batalha de Llewyn não fora em vão, o filme chama a atenção mesmo é pelo seu humor nonsense e personagens caricatos. Explorando os perrengues do músico, os diretores colocam-no em contato com toda espécie de gente maluca, como os velhos ranzinzas do estúdio, o cantor que faz backing vocal na hilária Please Please Mr. Kennedy (minha cena favorita de todo o filme) e, é claro, o sujeito ímpar interpretado pelo John Goodman. Reparem nos díalogos, digamos, “animadores” que ele trava com Llewyn e me digam se há algum amor no coração dos Coen.

Inside Llewyn Davis - Cena 5Em sua pequena jornada, Llewyn dá adeus a várias pessoas e situações que o colocavam pra baixo ou, de alguma forma, impediam-no de viver seu sonho de ganhar a vida com a música que, verdadeiramente, habitava dentro dele. No final das contas, o estranho senso de justiça dos Coen parece apontar que até mesmo os acasos bizarros (o esquema todo com a carteira de identidade é um bom exemplo) e falta de sorte que assombraram o personagem durante a trama impulsionaram-no rumo a algo bom. Essa é a minha interpretação para o roteiro mas, no final das contas, eu fiquei mais emocionado com o retorno para casa do Ulisses, referência bastante clara a obra do Homero, do que com as canções folk que refletem a tristeza de Llewyn. Inside Llewyn Davis possui algumas poucas piadas realmente boas (a maioria envolvendo o gato do Gorfein), personagens secundários engraçados e um tema interessante, no mais não o considero nem digno de indicações nas principais categorias do Oscar nem um dos momentos mais brilhantes de seus diretores.

Inside Llewyn Davis - Cena 4

O Grande Lebowski (1998)

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O Grande LebowskiJeffrey Lebowski (Jeff Bridges) é um cara comum: ele joga boliche, anda por aí de carro e, às vezes, viaja com ácido ouvindo Creendence. Aliás, Lebowski não é apenas “um cara”, ele é “O” Cara, com C maiúsculo mesmo, porque é assim que ele gosta de ser chamado. Um dia, o Cara é subitamente retirado de sua rotina simples, mas feliz, para uma aventura que começa com um episódio curioso e singular: bandidos, após confundi-lo com um outro Lebowski ricaço, mijam no tapete de sua sala. Logo no tapete que, além de bonito, ajudava a compor “tão bem” a sala de sua casa. Aconselhado por seus parceiros de boliche, o veterano do Vietnã Walter (John Goodman) e o inquieto Donny (Steve Buscemi), o Cara decide procurar seu desconhecido chará para cobrar satisfações e, claro, um tapete novo. Segue-se uma história que mistura, acreditem, um sequestro, uma feminista, uma banda nazista, um produtor de filmes pornôs e um pedófilo chamado Jesus.

Durante as quase 2 horas de O Grande Lebowski, encontramos uma história que celebra o poder da perseverança e das coisas simples da vida contada por dois cineastas cuja especialização no humor nonsense garantiu que elementos aparentemente tão díspares, como os citados acima, funcionassem – e funcionassem bem – na tela. O Cara, que é descrito no início do filme não como um herói, mas sim como o homem certo para um determinado tempo e lugar, é fruto das mentes dos Irmãos C0en, Joel e Ethan, que escreveram, dirigiram e produziram esse filme logo após sucesso do oscarizado Fargo.

O Grande Lebowski - Cena 3

De fato, não há nada de trágico ou de redentor no personagem. Podemos dizer até que, durante toda a história, ele não aprende exatamente nada. O que torna-o especial e digno de nossa atenção é sua capacidade de suportar tudo e todos a sua volta, o poder de continuar, de “permanecer” (como ele descreve em um diálogo significativo próximo a conclusão da trama) independente de qualquer coisa. Esta, no entanto, é uma conclusão a qual se chega APÓS ver o filme quando tu para pra pensar sobre o significado daquilo que viu. DURANTE a sessão, é possível apenas rir ou ficar chocado com as situações esdrúxulas e os personagens bizarros criados pelos Coen. Nesse ponto, devo dizer que, mesmo reconhecendo que O Cara é um sujeito bacanudo e que a atuação do Jeff Bridges para ele é soberba, o grande atrativo de O Grande Lebowski, na minha opinião, é o irritadiço e eloquente veterano interpretado pelo John Goodman.

O Grande Lebowski - Cena 4

Walter Sobchak é uma pilha de nervos ambulante. Veterano do Vietnã, ele discursa o tempo todo sobre as táticas usadas naquela guerra e sobre como as pessoas não valorizam o estilo de vida que os esforços dele e de seus companheiros haviam garantido para todos os americanos. Walter não gosta de ser interrompido enquanto fala e demonstra um apego doentio a regras e a lei, o que o faz, por exemplo, sacar uma arma e ameaçar atirar em um homem em uma cena onde, segundo ele, o mesmo roubou no jogo de boliche. Essa personalidade explosiva e violenta, que em alguns momentos chega a irritar (mérito do ator), torna-se um elemento humorístico agradabilíssimo quando a história do tapete do Cara desenvolve-se para um resgate de um sequestro. Walter julga que suas habilidades de guerra podem ser úteis para o caso e, mesmo sem o amigo pedir, resolve ajudá-lo.  A cena da troca da mala de dinheiro, na qual os personagens tem um revés inesperado em uma ponte, é a minha favorita de todo o longa. Destaco ainda, envolvendo o personagem, a entrevista com o garoto de  15 anos e, claro, a gritaria que ele promove em um café enquanto é observado por meia dúzia de clientes assustados. É difícil entender, principalmente após ver a lista dos indicados daquele ano, o motivo do ator não ter concorrido ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante pela atuação.

A expressão do Buscemi HUAHUAHU

A expressão do Buscemi HUAHUAHU

Mais sutil do que Walter, mas nem por isso menos importante para o conjunto, é o talento dos Coen para produzir imagens agradáveis aos olhos. Lembro que a primeira vez em que eu assisti um filme e consegui, da fato, verificar que havia algo “diferente” nas cores mostradas na tela, nos enquadramentos e nos posicionamento dos atores em cena foi no Onde os Fracos Não Tem Vez, longa que, talvez devido a exposição ocasionada pelo Oscar, tornou-se o trabalho mais conhecido dos diretores. O Grande Lebowski já trazia esse mesmo cuidado com a estética visual e ainda mostrava um elemento caótico que funcionava como um potencializador para as experiências visuais dos diretores: drogas. Em boa parte do filme, O Cara está “numa boa”, visivelmente chapado, e isso faz com que ele tenha visões de acontecimentos fantásticos que as câmeras dos Coen nos mostram com detalhes: Jeff Bridges voa sobre Los Angeles, é engolido pelo buraco de uma bola de boliche e dança com a Julianne Moore (um fetiche ambulante vestido com uma roupinha viking, referência direta a “masculinidade” da personagem) em um musical a la Broadway.

O Grande Lebowski - Cena 5

Comédias de humor nonsense não são exatamente um gênero que possamos classificar como popular, mas acredito que, até mesmo devido a simplicidade de seu tema, O Grande Lebowski dificilmente desagradará quem decidir investir nele algum tempo. Enquanto estou escrevendo a conclusão desta resenha, lembrei da luta do Cara e seus amigos contra a banda de nazistas e não pude deixar de rir sozinho. Lembrei também do carro do personagem, um Ford Torino caindo os pedaços, e ri novamente. Walter destruindo, por engano, o carro que um homem havia acabado de comprar? Outra risada. “Vou colocar esse revólver dentro do seu rabo e fazer *CLIC*”…. FAZER CLIC! Se essa frase, que é dita por uma sujeito rebolativo chamado Jesus, não é o suficiente para convencê-lo do potencial desse filme, confesso que não tenho mais argumentos para você, caro leitor, e encerro aqui esse texto.

NOBODY FUCKS WITH THE JESUS!

NOBODY FUCKS WITH THE JESUS!

Curvas da Vida (2012)

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Curvas da VidaClint Eastwood, com seus 82 anos, continua incrivelmente ativo no mercado cinematográfico, mas observando sua filmografia qualquer um percebe que ele tem abandonado progressivamente o trabalho como ator para dedicar-se a direção. Curvas da Vida encerra um hiato de 4 anos desde Gran Torino, sua última atuação, sendo que no mesmo período ele dirigiu 5 filmes (o próprio Gran Torino, A Troca, Invictus, Além da Vida e J. Edgar). Eastwood nunca escondeu sua vontade de ganhar o Oscar de Melhor Ator (ele concorreu com Os Imperdoáveis e Menina de Ouro), mas a impressão que eu tenho é que, depois da Academia ter ignorado completamente seu Walt Kowalski (personagem que, de certa forma, resumia tudo que ele fez durante sua longa carreira), ele meio que abandonou o projeto, pelo menos por hora. Curvas da Vida é um filme pequeno e despretensioso que agrada mais pelo conjunto do que por méritos individuais de qualquer um dos envolvidos.

O roteiro, seguindo a linha recente de trabalho do ator, traz um personagem tendo que lidar com os problemas da velhice. Gus (Eastwood) é um olheiro de um time de baseball, o responsável por encontrar jogadores novos com potencial para brilharem nos grandes times do país. Gus é uma lenda dentro da área que atua, mas a idade e os problemas de visão que os anos lhe trouxeram bem como as novas tecnologias usadas para descobrir talentos ameaçam seu cargo. Preocupada com o futuro do pai, Mickey (Amy Adams) junta-se a ele para ajudá-lo a decidir sobre uma importante contratação e então alguns problemas familiares vem à tona.

O filme abre com uma cena que me lembrou bastante o início de RED: o diretor Robert Lorenz nos mostra uma parede repleta de retratos do personagem em seus momentos de glória durante sua juventude. A câmera movimenta-se e revela o mesmo personagem no banheiro, obviamente de costas, fazendo um esforço sobre-humano para conseguir urinar. A mensagem é clara: o tempo passa para todos, inclusive para aqueles que estiveram no topo. A questão é que Gus não aceita isso. Solitário, o personagem insiste em viver sozinho e continuar fazenda as coisas exatamente como ele fazia em seus melhores dias. Vítima de uma doença que está gradativamente comprometendo sua visão, o olheiro tem dificuldades para continuar desempenhando sua função (ele tropeça constantemente nos móveis da casa e, em uma cena chave, faz uso de uma lupa para ler um jornal) e desperta a preocupação de um de seus melhore amigos (interpretado pelo excelente John Goodman), o qual entra em contato com sua filha e pede para que ela intervenha na situação. Mickey, que está prestes para ser promovida onde trabalha, vê nessa situação uma chance para reaproximar-se do pai e vai correndo até ele.

Cadê?

Cadê?

Clint não dirigiu nem escreveu o roteiro de Curvas da Vida, mas o filme, que foi produzido por sua empresa, a Malpaso, não poderia ser mais pessoal. Pai de 5 filhas e dois filhos de cinco mulheres diferentes, o ator, segundo a biografia Clint Eastwood – Nada Censurado do Marc Eliot, não dedicou-se a todos eles, sendo que alguns tiveram que permancer no anonimato durante muitos anos. Gus, que também não conviveu com Mickey durante a maior parte da vida dela, redime-se diante dos olhos da filha após revelar um detalhe sombrio de sua infância que ela não conhecia. Nas entrelinhas, temos um pai que justifica sua ausência devido a uma causa maior, um homem que pede compreensão por suas falhas e que revela que também sofreu com elas. No outro arco da história, temos o novo contro o velho, a inovação contra a experiência. O personagem que quer tomar o lugar de Gus como olheiro do time é unidimensional, o tal “almofadinha” idiota que nunca sai do escritório e que busca apenas retorno financeiro na profissão. Com seu computador e estatísticas, ele não é capaz de entender o verdadeiro significado do jogo, o fator humano que homens como Gus compreenderam após anos de profissão. Clint, que apenas vez ou outra utiliza sequências geradas por computador em seus filmes e, após quase 6 décadas, permanece como um astro rentável, também manda seu recado para aqueles que acham que o modelo tradicional de fazer cinema está acabado.

Curvas da Vida - Cena 2

Curvas da Vida é um filme deveras simples, com atuações medianas e um daqueles finais que fecham todas as pontas da trama com uma lição de moral. Clint tem seu melhor momento na cena do cemitério, Amy Adams está encantadoramente bonita mas já mostrou que pode render mais e o Justin Timberlake fica no limite entre o ruim e o aceitável. O teste final do jogador observado durante o filme é exagerado mas cumpre seu papel enquanto clímax e os argumentos desenvolvidos pelo roteiro, principalmente aqueles que dizem respeito a disputa entre o novo e o velho, poderiam ser menos maniqueístas. O Sr. Eastwood, que não tem mais nada para provar pra ninguém, pode dar-se ao luxo de participar sem muito esforço de um filme desses para dizer o que quiser da forma como quiser. Acredito, no entanto, que ele ainda guarda algo para seu último ato, uma atuação e um personagem bons o suficiente para colocá-lo novamente entre a lista dos indicados ao Oscar, a chave de ouro que fecharia uma das carreiras mais impressionantes da história do cinema.

Curvas da Vida - Cena 3

Argo (2012)

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Argo“Ben Affleck é melhor como diretor do que como ator”. Livro-me logo do clichê (verdadeiro, diga-se de passagem) para concentrar-me nesse excelente filme que venceu ontem (13/01) o Globo de Ouro na categoria Melhor Filme – Drama.

Com uma animação construída através do uso de story boards, Ben Affleck começa Argo recapitulando parte da história recente do Irã. Resumidamente, em 1979 o Aiatolá Khomeini tomou o poder apoiado por uma revolução popular e obrigou o xá Mohammad Pahlavi, o ditador que governava o país até então, a buscar exílio nos EUA. Desejosos de enforcarem julgarem Pahlavi por seus crimes políticos, os revolucionários cercam a embaixada americana no Irã e exigem que o criminoso lhes seja devolvido. Como os norte-americanos recusam-se a expatriar o xá, os membros da embaixada são feitos reféns. No meio do caos da invasão, 6 americanos conseguem escapar e esconderem-se na embaixada canadense. E agora, quem poderá protegê-los?

Calma, não criemos pânico, o Ben Affleck está aqui tanto para simplificar ao máximo essa crise diplomática para o espectador quanto para, interpretando o ex-agente da CIA Tony Mendez, encontrar uma forma segura de tirar esses 6 infelizes do solo iraniano. Didático, o diretor liga nomes a rostos e não enche a trama com detalhes políticos desnecessários para a sua compreensão (aprendeu, Sra. Bigelow?). Pragmático, Mendez argumenta contra propostas absurdas de operações de resgate sugeridas por membros do governo (entre elas, retirar os reféns do país usando bicicletas rs) para, em seguida, sugerir algo mais absurdo ainda: ele viajaria até o Irã como um produtor de cinema para rodar um filme de ficção científica e os 6 reféns passariam-se por membros de sua equipe, retornando com ele para os EUA assim que as filmagens terminassem.

O ensaio de uma mentira: Mendez combina com os reféns os detalhes de um filme que não será rodado

O ensaio de uma mentira: Mendez combina com os reféns os detalhes de um filme que não será rodado

Argo (que também é o nome do filme de ficção científica falso proposto por Mendez) por mais incrível que pareça, é baseado em fatos reais. Diante da crise diplomática aparentemente sem solução entre EUA e Irã no final da década de 70, um agente da CIA buscou ajuda junto a um profissional de Hollywood (no caso, o maquiador John Chambers, a mente por trás do trabalho fantástico realizado no O Planeta dos Macacos) e, manipulando a mídia a seu favor, divulgou que estava viajando para o Oriente Médio para procurar locações para rodar seu longa.

Apoiando-se na metalinguagem e em uma boa seleção de músicas do período (Dire Straits, Aerosmith e Led Zeppelin podem ser ouvidos durante a projeção), Ben Affleck criou um filme tenso e divertido de assistir. O plano de fuga não é considerado absurdo somente por quem está assistindo, praticamente todos os personagens do filme temem pelo destino da operação e isso cria ótimas cenas de perigo como o primeiro dia de filmagem no mercado e toda a sequência final com os apuros no aeroporto. Particularmente, gostei de ver o trabalho dos controladores de vôo iranianos e, com algum conhecimento de causa, afirmo que a reconstituição ali beirou a perfeição.

Goodman, Arkin e Affleck

Goodman, Arkin e Affleck

Quando mostram os bastidores hollywoodianos, diretor e roteiristas demonstram conhecimento e carinho pela indústria cinemaográfica e dão ao espectador a chance de sentir-se recompensado por conhecer os temas tratados. A piada com o Rock Hudson não fará sentido para quem não souber sobre os escândalos envolvendo a homossexulidade do ator. A leitura do roteiro fictício de Argo esconde uma divertida crítica ao gênero e a mídia do período (reparem nos jornalistas caricatos). A discussão entre Lester Siegel (Alan Arkin, indicado ao Oscar pela interpretação) e o dono de uma produtora também é empolgante, um daqueles duelos de arrogância e egos inflados corriqueiros no ramo que aqui é coroado por uma referência ao lendário Warren Beatty.

Simplifica o aspecto político do roteiro em nome de uma narrativa fluída e preenche a tela com cultura pop e detalhes para os fãs de cinema mais exigentes, eis o trabalho que rendeu ao Ben Affleck o Globo de Ouro de Melhor Diretor e corou o filme com a premiação mais importante da noite, deixando para trás filmes como Django Livre, Lincoln (ainda não vi esses), As Aventuras de Pi e A Hora Mais Escura. No final das contas, não importa se ele é melhor ou pior do que os concorrentes, mas sim que trata-se de um excelente trabalho que mostra mais uma vez que o Ben Affleck é melhor diretor do que ator. Ops, não deu para evitar.

Argo - Cena 3

Continua aí 🙂

O Artista (2011)

Padrão

Entre o público leigo ou entre aquelas pessoas que vêem cinema apenas como entretenimento, causa-se uma antipatia compreensível quando comenta-se sobre filmes antigos. Há poucos momentos onde pode-se falar de obras como M – O Vampiro de Dusseldorf  ou Luzes da Ribalta e encontrar alguém que de fato “converse” contigo, alguém que conheça tais filmes e faça algo além de balançar a cabeça com infinitos “ahams” enquanto você “palestra”. Gostar daquilo que lhe é contemporâneo é uma relação normal entre o público e a arte, o interesse por material antigo costuma aparecer naturalmente fruto do interesse acima da média e dedicação. Foi dessa forma que nomes como Alfred Hitchcock, Billy Wilder, Elia Kazan, Sam Peckinpah, Gregory Peck, Dennis Hooper e Peter Fonda, entre outros, começaram a fazer sentido pra mim, naturalmente, não por imposição, não para demonstrar “inteligência” (sic), não para querer ser diferente.

Por esse motivo, considero um erro exaltar as qualidades de O Artista dizendo que ele é um filme para quem “entende” de cinema (sic²), argumento infeliz que eu encontrei  em um ou outro review por aí. Esse filme merece ser celebrado, e talvez até imortalizado pelo Oscar de Melhor Filme, mais por aquilo que ele representa para o momento atual de Hollywood do que por satisfazer os anseios cinematográficos de um público restrito.

George Valentin e Peppy Miller

Dirigido e escrito por Michel Hazanavicius, O Artista é um filme relativamente curto (1h36min) filmado buscando emular as produções da época do cinema mudo, ou seja, ele é fotografado em preto e branco e os diálogos são poucos e aparecem em caixas de texto introduzidas entre uma cena e outra. Tal qual o clássico Cantando na Chuva, fala sobre a transição do cinema mudo para os filmes falados, mas aqui sai a comédia das estrelas desafinadas e entra o drama de um homem que de uma hora para outra perde seu lugar no mundo e sua razão de existir. George Valentin (Jean Dujardin) é um consagrado ator de cinema mudo, um homem charmoso e talentoso que ganha o coração do público com seu sorriso largo e seus habilidosos passos de dança. Ele conhece e apaixona-se pela desconhecida Peppy Miller (Bérénice Bejo), uma fã cuja carreira no cinema ele ajuda a lançar. O tempo passa, Perry alcança o status de estrela dos novos filmes falados enquanto George, que agora é considerado ultrapassado tal o qual o cinema mudo, declina profissional e pessoalmente.

Pois então, como levar o público acostumado com o cinema blockbuster para as salas de exibição para assistir um filme diferente de tudo aquilo que ele está acostumado? Cobrir o mesmo de elogios e prêmios é uma opção, visto que, principalmente tratando-se do Oscar, a visibilidade desperta a curiosidade do público menos informado. Quem teria assistido, por exemplo, filmes como O Discurso do Rei não fossem os prêmios por ele conquistados? É uma opção, mas não é exatamente um caminho que eu endosso considerando experiências que eu tive com filmes como A Árvore da Vida. Atraídos pelo “artifício” Brad Pitt, várias pessoas saíram da sessão antes do filme acabar decepcionadas com as divagações filosóficas do Terrence Mallick. Ao indicar O Artista, opto pela sinceridade: se você não tem o hábito de assistir filmes antigos, essa talvez é uma das melhores oportunidades que tu encontrará para começar a fazê-lo.

Bérénice Bejo e a lenda Malcolm McDowell

Sem procurar “chifre na cabeça de cavalo”, qualquer um divertirá-se e aplaudirá a atuação apaixonada do francês Jean Dujardin, apreciará a história simples e eficaz e reconhecerá o belo trabalho de reconstituição de época e de estilo (detalhes como os créditos iniciais feitos tais quais aqueles de antigamente não passam despercebidos). Com um pouco mais de “bagagem”, percebe-se a presença de lendas vivas como James Cromwell, John Goodman e Malcolm McDowell e, indo mais fundo, há a possibilidade de analisar as relações complexas entre fã e ídolos e de identificar a competente e divertida condensação de estereótipos do período.

O cuidado e o carinho (sim, aqui podemos falar que há sentimento envolvido) do diretor para com o cinema resultaram em um filme capaz de agradar a todos, intelectualiza-se o simplório e simplifica-se o complexo ao mesmo tempo. Ao unir duas correntes tão distintas em termos de proposta e de público alvo, O Artista transformou-se em um marco instantâneo do cinema contemporâneo, um filme que, caso confirme as tendências apontadas até agora levando o Oscar, ajudará a abrir muitas portas para um tipo de cinema que, mais do que cultuado por uma meia dúzia, merece ser multiplicado.