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Trumbo – Lista Negra (2015)

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Trumbo - Lista NegraVocê é ou já foi comunista? Faça o teste oficial respondendo a pergunta abaixo:

  • Mamãe faz o seu lanche favorito. Sanduíche de queijo e presunto. Na escola, você vê alguém sem lanche algum. O que você faz? Divide? Diz para ele arrumar um trabalho? Oferece um empréstimo a 6%? Simplesmente o ignora?

Você divide? Ah, sua pequena comunista!

E, com esta brincadeira, Dalton Trumbo (Bryan Cranston) mostra para a filha que ela também é um pouco comunista 😀 Obviamente, trata-se de uma simplificação jocosa, mas, naquela época, em 1947, o famoso roteirista ainda não tinha motivos para tratar com mais seriedade a paranoia de seus conterrâneos contra o comunismo: a 1° emenda da constituição americana garantia a liberdade de expressão e o direito de livre associação para todos. Trumbo não imaginava, porém, que a disputa ideológica entre EUA e URSS acirraria-se nos próximos anos e obrigaria-o a negar a sua própria identidade e convicções políticas para conseguir sobreviver aos terríveis anos em que o macartismo e a Lista Negra de Hollywood assombrariam a vida de quem declarava-se “comunista” nos Estados Unidos.

Trumbo – Lista Negra, longa do diretor de comédias Jay Roach (da série Entrando Numa Fria), é um desses filmes feitos para agradar em cheio os fãs mais dedicados de cinema. Roach recria os bastidores de Hollywood para homenagear a incrível história de um homem que, apesar de ter vencido o Oscar duas vezes (Melhor Roteiro por Arenas Sangrentas e A Princesa e o Plebeu), não pode receber nenhuma das estatuetas. Motivo? Trumbo, que fora condenado por ter ligações com o movimento comunista estadunidense, só conseguia vender seus roteiros através de pseudônimos, logo ele não podia comparecer nas premiações. Não é apenas por essa deliciosa metalinguagem, no entanto, que o filme merece sua atenção: temos aqui uma produção que cumpre o importantíssimo papel de reabrir uma ferida antiga da história norte americana para que as dores provocadas por ela não sejam esquecidas e nem repetidas pelas novas gerações.

Trumbo - Lista Negra - Cena 4Talvez por saber que hoje em dia é difícil falar de comunismo para o público sem despertar uma infinidade de reações boçais, o diretor abre o filme explicando o contexto que estimulou vários americanos a aderirem à ideologia soviética na década de 40. Após a Quebra da Bolsa de NY em 1929 e o período de instabilidade econômica conhecida como “Grande Depressão” que seguiu-se, o comunismo praticado em solo russo surgiu como uma possível alternativa para o capitalismo americano que acabara de dar sinais de esgotamento. Assim sendo, Trumbo e outros tantos roteiristas, atores e diretores de Hollywood filiaram-se ao Partido Comunista Americano. Inicialmente, os direitos civis deles foram respeitados, mas o orgulho nacional recuperado com a vitória na Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria levantaram suspeitas sobre suas atividades políticas. Acusados pelo senador Joseph McCarthy de usarem os filmes para “envenenarem a mente dos americanos”, Trumbo e seus companheiros foram intimados a deporem no senado e, por recusarem-se a “cooperarem” com as investigações, acabaram presos.

Trumbo - Lista Negra - Cena 3Como o verdadeiro foco de Trumbo é abordar as consequências reais da paranoia e da histeria política, tanto esta contextualização quanto a ida do roteirista para a cadeia são mostradas rapidamente. Nos primeiros minutos da trama, o diretor nos leva até festas e gravações de filmes onde é possível perceber a crescente rejeição ao comunismo pela população e pelas pessoas envolvidas com o mundo do cinema. Trumbo é ofendido na frente da própria família por um homem descontrolado e vê a colunista Hedda Hopper (Helen Mirren) e o ator John Wayne (David James Elliott) ajudarem a criar a “Aliança de Filmes pela Preservação dos Ideais Americanos”, uma entidade que lutou pela censura e exclusão dos trabalhos dos comunistas de Hollywood.

O que era e deveria ser encarado apenas como uma divergência política, algo fundamental para o bom funcionamento da democracia, é então criminalizado e Trumbo é enviado para a cadeia. Desnecessário falar dos predicados do Bryan Cranston para quem assistiu a série Breaking Bad, mas quem acha que ele nunca dissociará-se da imagem do icônico Walter White surpreenderá-se com o quão rápido ele nos faz aceitá-lo em outro papel. A última metade do filme exige muito do ator, visto que Trumbo experimenta todo o tipo de alegrias e humilhações (reparem na sensação de impotência absoluta no rosto dele na cena da revista na prisão) que levam-no desde a descrença total até o regozijo da vitória, e Cranston não decepciona, fazendo-nos alternar constantemente entre o amor e ódio pelo personagem.

Pela relevância do tema e pela qualidade do material, considero uma verdadeira bizarrice a pouca atenção dada pela Academia ao filme. Trumbo, que definitivamente não é um veículo panfletário para nenhuma ideologia (o roteiro critica, por exemplo, tanto a hipocrisia dos defensores do capitalismo quanto a falta de praticidade dos comunistas), recria momentos importantes e emocionantes da história do cinema, como as polêmicas que envolveram as filmagens e o lançamento do Spartacus do Kubrick, faz referência a uma infinidade de produções do período (gostei demais de tudo que envolveu o John Goodman e os filmes B) e mostra o poder do exemplo de um homem que, em um momento de dificuldade, apoiou-se na família, nos amigos e no próprio talento para ajudar a derrotar a Lista Negra de Hollywood, episódio vergonhoso e inaceitável da história da indústria cinematográfica (que vergonha, John Wayne!).

Pela justa homenagem que presta ao roteirista, pela defesa que faz da liberdade de expressão e pela divertida jornada através dos bastidores de Hollywood, Trumbo merecia mais do que apenas uma indicação ao Oscar (Melhor Ator pela atuação do Cranston): ao meu ver, ele poderia tranquilamente substituir o A Grande Aposta, o Brooklyn, o Ponte dos Espiões ou o Spotlight na categoria de Melhor Filme. Foram injustos com o roteirista no passado, estão sendo injustos agora com o filme sobre ele: a Academia, pelo jeito, continua receosa com material sobre os “comedores de criancinhas”. Que vergonha!

Trumbo - Lista Negra - Cena 2

Vampiros de Almas (1956)

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Vampiros de AlmasAinda ontem, conversando com um amigo sobre o tenebroso período na vida que alguns de nós dedicam à monografia, relembrei a minha leitura do clássico cult Sem Destino. Nunca considerei o filme do Dennis Hopper como um marco da contracultura, pelo menos não enquanto um trabalho que endossava o movimento. Mesmo com sua trilha sonora calcada no rock e no folk, passagens que expõe problemas como o preconceito e os personagens viajando, literalmente com suas motos estilosas e também através do uso de drogas, Sem Destino é, ao meu ver, muito mais um registro melancólico do fim da contracultura, com todos aqueles acampamentos bizarros de hippies fazendo coisas sem sentido, do que uma celebração de um novo modo de viver. A questão que interessa aqui para essa resenha é a intencionalidade. Teriam Hopper, Peter Fonda e T. Southern, os roteiristas, tencionado esse tom pessimista ou ele foi impresso, inconscientemente, devido aos eventos que eles presenciaram no período? Filmes não são, necessariamente, registros históricos fiéis dos períodos e/ou temas que representam, mas não há dúvidas que, procurando nas entrelinhas, é possível entender muito do imaginário social experimentado na época.

Vampiros das Almas, adaptação do Don Siegel (diretor que realizou muitos filmes com o Clint Eastwood, como Perseguidor Implacável e Os Abutres Têm Fome) para o romance do escritor Jack Finney, é um desses filmes que são mais efetivos para compreendermos algumas questões históricas do que muitos livros por aí. Conscientemente, Finney sempre alegou que escreveu “apenas” uma história de ficção científica sobre alienígenas que vem para a Terra (leia-se Estados Unidos) com o intuito de substituir os humanos por réplicas sem emoções e personalidade. “Não há metáforas sobre o macartismo ou comunismo”, ele respondia em entrevistas quando perguntado sobre o suposto conteúdo político de sua obra. Não foi exatamente isso que eu e meu amigo Stephen King, que me indicou o filme (rs) através do livro Dança Macabra, vimos.

Vampiros de Almas - Cena 5Não há nem um vestígio de racionalidade no homem que grita descontroladamente dentro uma delegacia após ser preso por perturbar a paz. Apesar de reivindicar a razão e a credibilidade que o título de médico deveria lhe garantir a priori, o Dr. Miles Bennell (Kevin McCarthy), suado, ofegante e com o cabelo bagunçado, não convence ninguém quando diz que “não é louco” e que eles “precisam ouví-lo antes que seja tarde demais”. O desespero de Bennell só aumenta quando eles mandam um psiquiatra para interrogá-lo. “Eu não sou louco!”, ele repete, mas como o sujeito convida-o à contar a história que o levou àquele estado de euforia, ele senta e começa seu estranho relato.

Regressando a pequena cidade de Santa Mira, Bennell reencontra sua antiga namorada, Becky Driscoll (Dana Wynter), e também alguns relatos deveras incomuns sobre seus pacientes e conhecidos. Pessoas que estavam doente apareceram sadias de uma hora para outra e um menino e uma mulher alegavam que sua mãe e seu tio, respectivamente, não eram as mesmas pessoas que eles costumavam ser. A aparência era igual, assim como o eram as memórias e hábitos mas, eles insistiam, havia qualquer coisa de estranho em seus olhos e emoções. Bennell, homem da ciência, desconfia e “trata” esses pacientes com conselhos sobre prudência e calmantes, mas aí acontece algo que nem mesmo um cético poderia contestar: após ser chamado com urgência na casa de um amigo, o médico é levado até um corpo recém descoberto. Deitado aparentemente sem vida em uma mesa e exibindo um rosto sem expressão com traços genéricos, o corpo assusta por não possuir digitais mas também por ter aparentemente a mesma altura e peso do dono da casa. “Estariam os moradores da cidade de Santa Maria sendo substituídos por réplicas?”, pergunta-se Bennell, e então o que era apenas uma dúvida revela-se uma terrível realidade quando ele e Becky descobrem na cidade casulos em forma de vagem que carregam cópias de corpos humanos em seus interiores.

Vampiros de Almas - Cena 4Não duvido que eu poderia ter chegado sozinho a essa conclusão (sem falsa modéstia, já li uma ou outra coisa sobre os temas discutidos) mas, como não gosto de apropriar-me das idéias alheias, dou o crédito da análise das entrelinhas de Vampiros das Almas para o S. King. No divertido e já mencionado Dança Macabra, o autor destrincha a obra conjunta de Siegel e Finney como uma metáfora para os problemas que ocupavam a mentalidade americana no período da Guerra Fria. Assisti o filme principalmente porque achei engraçada a forma que o King descreveu os tais casulos que abrigavam as cópias humanas, mas não nego que fiquei curioso para ver se o autor estava exagerando ao atribuir ao seu colega de profissão uma leitura de sua obra que o mesmo negava. Acreditem, pelo menos no que diz respeito ao filme, o lance todo é tão explícito que fica até difícil dizer que trata-se de uma metáfora rs

Vampiros de Almas - Cena 2A política do senador americano Joseph McCarthy que ficou conhecida como macartismo foi responsável pela prisão de vários cidadãos sob a acusação de comunismo e atividades anti americanas. Efeito colateral, criou-se entre os cidadãos daquele país um clima de paranóia onde qualquer um poderia ser um espião soviético, inclusive o vizinho ao lado. Quando Bennell e Becky fogem desesperados, desconfiando que todos da cidades pudessem ser alienígenas, divertimo-nos com a trama envolvente e bem desenvolvida de ficção científica, mas é difícil negar que ali, paralelamente, o macartismo ecoa forte. Mais óbvia, acredito, é a referência ao comunismo. Os alienígenas estão substituindo os morados de Santa Mira por réplicas iguais em sentimentos e emoções, pessoas que sacrificam a liberdade individual em nome do fim do sofrimento e das mazelas do mundo. Bennell (ou Tio Sam, como prefiram) recusa-se a levar uma vida sem o poder da escolha e diz, com close e tudo, que “prefere morrer do que levar uma vida sem liberdade”. É preciso ser cego/surdo, ou historicamente ignorante, para não associar esse discurso à Guerra Fria. Siegel, ao que tudo indica, percebeu o material que tinha em mãos e, em um diálogo sobre histeria em massa que é mostrado logo no início do filme, diz que algumas pessoas reproduzem inconscientemente certos comportamentos baseados naquilo que está acontecendo no mundo em suas épocas. Reconhecendo ou não, o falecido Jack Finney perdeu essa.

Vampiros de Almas - Cena 3Independente do conhecimento histórico do espectador ou do interesse do mesmo de relacionar o filme com o contexto em que ele foi produzido, Vampiros das Almas é um ótimo filme. O sentimento de paranóia foi muitíssimo bem exposto pelo trabalho competente do Siegel e o casal de protagonistas tem uma ótima química. A cena do desespero do Bennell na estrada, aliás, é excelente, e é uma pena que pressões do estúdio por um final “feliz” tenham impedido o filme de ter terminado ali.

Vampiros de Almas - Cena

O Ato de Matar (2012)

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O Ato de MatarPela primeira vez na história desse blog, trago para vocês a resenha de um dos concorrentes ao Oscar de Melhor Documentário antes da cerimônia. Por mais que alguém possa encarar isso (justamente, diga-se de passagem) com um “tá, e daí?”, devo dizer que trata-se de uma importante realização pessoal. Quem acompanha a página regularmente já deve ter lido por aqui que, mais de uma vez, eu quase decretei o fim do Já viu esse?. Problemas pessoais, emprego novo e o meu casamento consumiram grande parte do meu tempo no ano passado, de forma que constantemente eu me senti esgotado psicológica e intelectualmente para escrever textos de aproximadamente 1000 palavras sobre os filmes que eu assisti. A consequência disso tudo foi que, no dia da cerimônia do Globo de Ouro no mês passado, eu havia visto pouquíssimos indicados, um contraste gritante com a cobertura que fiz do mesmo evento no início de 2013. Triste com a situação, decidi encerrar essa empreitada pessoal para poder ver os filmes sem a “obrigação” de resenhá-los depois e cheguei até mesmo a iniciar um texto de despedida. Resultado: fiquei mais triste ainda. Há muito tempo o cinema tornou-se parte inseparável da minha vida e a sensação de que eu já não estava mais tendo prazer com algo que me ajudou a definir minha personalidade foi desoladora. Precisei encarar o sentimento de perda para relembrar o quanto isso aqui me é caro e, com o ânimo renovado, iniciei a cobertura do Oscar disposto a dar o meu melhor. Esse texto sobre O Ato de Matar é, mais do que uma resenha, a celebração pessoal de uma mudança de postura 🙂

Em 1965, um golpe militar comandado pelo General Suharto tomou o poder na Indonésia. Alinhado com a política capitalista ocidental, as forças de Suharto, que eram formadas por paramilitares e gângsters, mataram (números apresentados pelo diretor Joshua Oppenheimer) cerca e 1 milhão de pessoas sob a acusação de atividade comunista.

O Ato de Matar - Cena 3É comum, em documentários sobre esse tipo de episódio, que os produtores foquem suas investigações nas vítimas da tragédia. Em uma narrativa tradicional, portanto, veríamos filhos e netos dos assassinados dando seus depoimentos contra os militares. Ainda que não fosse feito de forma declarada, o filme traria um discurso velado contra as mazelas do capitalismo. Principal atrativo e diferencial de O Ato de Matar, aqui somos surpreendidos com a recriação do genocídio feita, pasmem, pelos próprios assassinos. Oppenheimer, acompanhado pelo ex-paramilitar Anwar Congo e pelo gângster Herman Koto, entrevista pessoas que participaram da matança e registra depoimentos inacreditáveis de apoio ao que foi feito.

Anwar Congo é o que podemos chamar de personagem principal do longa. Tratado por onde passa como um verdadeiro herói nacional, já que os militares e políticos ligados a eles ainda estão no poder, Anwar é convidado pelo diretor a recriar, tal qual ele quisesse, os eventos sangrentos pós golpe de 65. Fã que é dos filmes americanos (ele trabalhou algum tempo na bilheteria de um cinema e é um grande admirador de nomes como Sidney Poitier e John Wayne), o entrevistado decide por gravar um longa encenando os motivos que o levaram a matar os supostos comunistas.

O Ato de Matar - CenaEntre uma gravação e outra (das quais Herman participa quase sempre travestido de mulher rs), Oppenheimer abre espaço para que cidadãos comuns, militares, governantes e empresários que moram atualmente no país também digam o que pensam sobre o que aconteceu. Fruto da seleção tendenciosa do diretor ou do medo de represália, tais declarações não diferem-se em nada do que é falado por Anwar. Percebe-se o apoio incondicional ao extermínio dos comunistas e a glorificação de grupos militares como a Juventude Pancasila e os gângsters, esses últimos defendidos pelo menos umas 5 vezes durante a projeção como os verdadeiros trabalhadores da nação, pessoas dispostas e correr riscos para o bem do país. Gângster, aliás e segundo eles, “deriva do inglês homem livre“, e é exatamente de homens livres, e não de comunistas comedores de criancinhas, que a Indonésia precisa.

O Ato de Matar - Cena 6Pode-se argumentar que O Ato de Matar é uma declaração contra a violência, inclusive a cinematográfica. Anwar confessa que aprendeu a sua forma favorita de matar (!) assistindo os filmes de gângsters americanos. Atirar, esfaquear e perfurar faziam sujeira demais. Mais prático, limpo e “humano”, ele diz, era enroscar um arame ao redor do pescoço das vítimas e estrangulá-las até a morte.  Marlon Brando, em sua caracterização imortal de Don Corleone, e o cowboy John Wayne que lutava contra os índios em filmes de bang bang, tiveram grande influência na forma que pessoas como Anwar viram o mundo e não podemos nunca desconsiderar o poder do exemplo. Não acredito, no entanto, que esses exemplos determinem o que as pessoas serão, até porque o cinema americano da época também é cheio de heróis de moral inabalável, como o Atticus Finch do Gregory Peck no O Sol é Para Todos de 1962. A questão é e sempre foi a escolha individual, que pode até ser influenciada, mas raramente é determinada.

O Ato de Matar - Cena 4Oppenheimer diz o que precisa ser dito sobre violência, mas é justamente quando ele coloca Anwar para lidar com suas próprias escolhas que o filme dá o seu recado. Acontece que, em suas encenações sobre os assassinatos, o ex-paramilitar participa de uma cena onde ele mesmo é estrangulado com um arame por um comunista. A consciência sobre o que fez, que ele já demonstrara ter anteriormente ao confessar que tem pesadelos onde os assassinados o atormentam, aflora de uma forma insuportável e Anwar desaba diante do espectador. Do homem que anteriormente dizia-se orgulhoso do que fizera e que explicava, rindo e dançando, como o fizera, resta então apenas uma sombra amaldiçoada pelas escolhas de toda uma existência, um senhor de cabelos brancos que mal consegue conter o vômito ao retornar ao local onde ceifou, segundo ele, aproximadamente 1000 vidas.

O Ato de Matar - Cena 2O Ato de Matar é longo (cerca de 2h39min), repetitivo e, não raramente, cansativo e excêntrico (a maioria das cenas envolvendo Herman, como essa do peixe que aparece no poster, são bizarras). Independente de posicionamento político, Oppenheimer ouve e nos faz ouvir muita abobrinha até o momento em que mostra Anwar sentindo o peso de seus crimes. Lê-se no Wikipédia que, antes de serem dizimados, os comunistas do país também assassinaram militares e planejaram um golpe contra o governo. Isso não é falado no filme e também, como foi dito, não vemos a entrevista de nenhuma vítima do genocídio para balancearmos nossa visão sobre os fatos. Todo caso, isso realmente não importa aqui. O grande trunfo de O Ato de Matar é mostrar, tal qual acontece no clássico Crime e Castigo do Dostoiévski, que a punição para o que é errado sempre chega, seja socialmente, através de julgamentos, cadeia e pena de morte, ou seja moralmente, através da implosão pessoal, como acontece com Anwar.

O Ato de Matar - Cena 5

Nascido em 4 de Julho (1989)

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“Estes milhões de homens praticaram, em relação uns aos outros, tão grande número de abominações, de fraudes, de traições, de roubos, de falsificações de moedas, de pilhagens, de incêndios e de morticídios como não há exemplos nos arquivos dos tribunais do mundo inteiro, funcionando há séculos, e sem que, no entanto, durante todo esse período, aqueles que cometeram tais crimes fossem considerados, realmente, criminosos.”

O texto acima, trecho retirado do Guerra e Paz do Tolstói, descreve atos praticados durante as guerras napoleônicas mas não está longe de representar um retrato fiel de conflitos mais recentes como a Guerra do Vietnã. Visto anos depois, ainda mais em um contexto onde “Guerra Fria” já não é nada mais do que um termo, o conflito parece simples de ser compreendido, é fácil ver os EUA envolvendo-se na bandeira da liberdade para justificar sua disputa ideológica contra a ex-URSS. Como explica Tostói no mesmo livro, esse pragmatismo não apenas não dá conta de fornecer explicação satisfatória para compreender aquele período quanto, em sua amplitude, desconsidera as milhares de vozes, sentimentos e vontades conflitantes que envolvem qualquer acontecimento histórico. Como justificar, por exemplo, o alistamento voluntário no exército em época de guerra usando apenas o patriotismo como motivo? O que de fato leva um jovem a querer sair do conforto de sua rotina para ir ao outro lado do mundo matar seus semelhantes?

Ron Kovic (Tom Cruise) é aquilo que podemos chamar de adolescente americano “padrão”. Branco, praticante de esportes, filho de uma família religiosa e patriota, Kovic alista-se para a Guerra do Vietnã para “combater o comunismo”, para “defender os interesses dos EUA”, para fazer sua parte e ajudar o país assim como a geração de seu pai o fez na Segunda Guerra Mundial. Por trás do discurso do governo que Kovic engoliu e vomita para quem queira escutar, está um jovem frustrado pelas poucas oportunidades que o futuro parece lhe oferecer, um atleta derrotado, um aluno medíocre e um adolescente cujo interesse amoroso escolheu outro para ir ao baile de formatura. Em sua aventra quixotesca pelo sul da Ásia, Kovic conhece os terrores da guerra e retorna para casa paraplégico. Aos poucos, ele percebe o quanto o seu amor à pátria é pouco ou nada correspondido.

Oliver Stone e Ron Kovic

  Nascido em 4 de Julho é uma extensão natural de Platoon, ambos dirigidos pelo polêmico Oliver Stone. Se Stone, que lutou na Guerra do Vietnã, mostra em Platoon o quanto o terror e o medo, não a ideologia, preencheram os campos de batalha vietnamitas, nesse filme, que é baseado na biografia do veterano Ron Kovic, ele nos conduz através do desmoronamento dessa ideologia naqueles que lutaram para defendê-la (ou que pelo menos acreditavam que o faziam). Kovic, que desde pequeno acompanhava os pais nas celebrações do dia da independência americana (04/07), considera uma honra poder lutar pelo seu país. “Não pergunte o que o seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo seu país”, “ame-o ou deixe-o” fazem sentido para ele até o momento onde ele descobre que, fora títulos e medalhas com os quais ninguém importa-se, ele sacrificou seu futuro em nome de uma causa sobre a qual ele pouco ou nada conhecia de fato.

Stone conduz a história mostrando a transformação do patriotismo de Kovic em ativismo antiguerra. Dois fatores são fundamentais para o sucesso da empreitada. Primeiro, o conhecimento de causa. A opinião do diretor e de Kovic, com quem Stone divide o crédito pelo roteiro, pode até ser apenas mais uma entre tantas outras possíveis para o que se passou no Vietnã, mas é uma opinião que transborda as expectativas, medos e dúvidas de alguém que esteve lá. Sempre que o diretor mostra um imagem forte ou um personagem indeciso no campo de batalha, eu pensava “será que foi assim que ele viu/sentiu aquele momento?”. Isso é e sempre será válido.

O outro ponto é o Tom Cruise. Nunca vi o ator como apenas mais um rostinho bonito de Hollywood e filmes como Magnólia, Entrevista com o Vampiro e Vanilla Sky comprovam isso. Quando a história começou, no entanto, tive a impressão que tudo encaminhava-se para uma reprise do que o Brando fez no Espíritos Indômitos visto a proximidade do tema. Cruise não apenas dá personalidade ao personagem quanto estabelece uma relação de amor e ódio com o espectador como só os grandes atores conseguem. Ele consegue transitar facilmente entre o “bom mocinho” do filho perfeito que está saindo de casa para defender o país e a escória humana, moral e intelectualmente falando (sim, estou aplicando juízo de valor) em que ele transforma-se  apóa a guerra.

As cenas da confissão de um crime de guerra por ele cometido e a discussão familiar envolvendo palavrões a blasfêmias após uma bebedeira em um bar valem o filme. Destaco ainda a bela briga de cadeiras de roda com o personagem do Willem Dafoe, que tem uma aparição breve mas marcante na história.

Nascido em 4 de Julho concorreu a 8 Oscars, levou 2 (incluido Melhor Diretor) e, assim como Platoon, é uma bela mensagem antiguerra, um filme que consegue conciliar um contexto político com uma história interessante, direção e atuações acima da média.

Reds (1981)

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Há poucos dias, recebi um folheto da Igreja Católica Apostólica Romana onde anunciavam o fim do mundo para 2012 e descreviam pormenores de todas as calamidades que enfrentaremos até lá, pérolas como o aumento do preço do petróleo (evento que eles chamam de a corrida do cavalo negro), queda de meteoros de pegasus e uma guerra entre o ocidente e o oriente, o qual será liderado pela união das forças russas e chinesas e tentará instalar o “terrível” comunismo no mundo todo. Risadas misturaram-se a sentimentos de revolta e indignação e, mais uma vez, pude confirmar o quanto a ignorância pode ser utilizada como instrumento de poder e alienação. Qualquer pessoa que tenha um mínimo de conhecimento sobre história sabe sobre os conflitos entre o comunismo e o catolicismo, mas os leigos (e na oportunidade eu fui “presenteado” com a opinião de alguns) associarão a palavra comunismo com algo essencialmente ruim e perpetuarão todos os absurdos  que são ditos a seu respeito.

Sim, o objetivo aqui é comentar o o filme, no caso o Reds dirigido e protagonizado pelo Warren Beatty, mas tal introdução fez-se necessária tanto pela necessidade de expor o absurdo (CORRIDA DO CAVALO NEGRO!) quanto para fazer um contra-ponto à forma que o filme aborda o comunismo, mais especificamente falando o socialismo soviético iniciado após a Revolução Russa de 1917. Reds conta a história de John Reed (Beatty), jornalista simpatizante de idéias revolucionárias e defensor das causas operárias  que, ao lado da esposa Louise Bryant (Diane Keaton), posiciona-se contra a entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial, presencia a Revolução Russa de Outubro e procura levar para o seu país a ideologia bolchevique. Autor do livro Dez Dias Que Chocaram o Mundo, Reed converteu-se em um dos principais nomes da militância socialista na América e até hoje é o único americano cujo corpo foi enterrado na Praça Vermelha do Kremlin.

Diane Keaton e Warren Beatty

Lançado em plena Guerra Fria, Reds me surpreendeu pela forma madura que o socialismo/comunismo é abordado. Se for para dar uma resposta simples, longe de todas as discussões complexas que o tema pede, eu diria que o filme posiciona-se contra a ideologia soviética. No decorrer do filme, Reed passa de um militante cheio de planos para mudar o mundo à um homem desiludido e decepcionado com o rumo dos acontecimentos. O socialismo real revela-se tão burocrático e violento quanto o capitalismo e Reed , inebriado pela causa que defende, distancia-se do povo, da família e de sua individualidade em nome da sensação sedutora de que ele é indispensável para aquele momento histórico. Além disso, o filme ainda usa a personagem da Diane Keaton para criticar a superficialidade e até mesmo a futilidade de algumas causas defendidas pelas mulheres (mas que extendem-se facilmente ao universo masculino) e, em menor escala, ao liberalismo e o anarquismo.

Tais críticas, no entanto, não são apresentadas unilateralmente, não tentam “endemoniar” algo ou alguém. Beatty usou toda sua influência em Hollywood para financiar um épico de mais de 3 horas onde ele pode defender um ponto sem abrir mão de mostrar o “outro lado”. Críticas contundentes são feitas ao autoritarismo americano e a intolerância e ignorância política de alguns de seus compatriotas. Reed não é endeusado nem massacrado. Sua rica e complexa trajetória é vasculhada através de depoimentos de pessoas que conviveram com ele, pessoas capazes de atestar sua força de vontade e inteligência mas que também lembram-se de um homem consumido pelo próprio ego.

Mais uma biografia sobre o jornalista do que um registro sobre a Revolução Russa, Reds triunfa ao oferecer um meio termo para os temas que aborda e mostra-se uma obra poderosa por dar elementos para que o espectador pense por si mesmo independente do caminho mostrado. O trabalho técnico é impecável e nomes como Jack Nicholson e Gene Hackman são belos atrativos. Ganhou 3 Oscars, entre eles o de melhor diretor para Beatty e é indicação certa para interessados em política e para quem sabe que, ao contrário do que se diz, comunistas não comem criancinhas no café da manhã.