“A popularização da Idade Média nas últimas quatro décadas teve como marco o sucesso de filmes como Excalibur, do diretor inglês John Boorman, e o próprio O Nome da Rosa – o qual, aliás, contou com a consultoria de Jacques Le Goff, um importante medievalista”.
A citação é do História Medieval, livro do Marcelo Cândido da Silva que terminei de ler há pouco tempo. Ao longo de 155 páginas, o professor da USP passa por temas como Invasões Bárbaras, Império Carolíngio, Feudalismo, Cruzadas, Peste Negra e Guerra dos Cem Anos e termina fazendo uma análise sobre a forma como enxergamos a Idade Média atualmente. Segundo ele, a visão tradicional, ou seja, a da “Idade das Trevas” (torturas, fome, intolerância religiosa, misticismo, submissão da mulher e guerras) tem sido aos poucos revisitada para incluir aspectos positivos do medievo, como a origem das raízes nacionais e regionais, das fábulas e das tradições orais e escritas que teriam dado origem às modernas nações europeias.
Li o livro porque eu também quero mudar minha percepção sobre Idade Média. Eu, que dou aula para o ensino médio desde 2015, estou começando a me afeiçoar ao tema (acabei de assistir a série Tudors, comecei White Queen), mas até então eu achava tedioso passar pela matéria do primeiro bimestre do 1º ano, visto que ela começa com Feudalismo e termina com Grandes Navegações. Este ano, antes do Covid-19 paralisar as aulas presenciais, eu dei aula vestido de rei absolutista, de cavaleiro cruzado e de Martinho Lutero numa tentativa de tornar aquilo mais interessante para os alunos e para mim também. A ideia é essa, transformar ponto fraco em ponto forte, por isso estou buscando repertório sobre o período e por isso vi e resenho agora este filme que o Marcelo Cândido recomendou.
Excalibur (que por aqui ganhou o subtítulo IMPRESSIONANTE de ‘A Espada do Poder’, devidamente suprimido) é uma narrativa clássica sobre a história daquele que certamente é o monarca mais conhecido da história, o Rei Arthur. Nomes como Camelot, Guenevere, Lancelot, Merlin, Morgana e os Cavaleiros da Távola Redonda fazem parte do imaginário da cultura pop mundial e praticamente todo mundo já esbarrou com eles uma vez ou outra na vida, seja em filmes, quadrinhos, músicas, etc. O que o longa do diretor inglês John Boorman faz é organizar as tramas mais conhecidas desse universo (que ainda carece bastante de fontes sólidas, baseando-se principalmente nos relatos deveras fantásticos de escritores como Gildas, Godofredo e Chrétien de Troyes) em pouco mais de 2hrs20min de projeção. É legal? Médio.
Boorman inicia sua epopeia mostrando como o Uther Pendragon (Gabriel Byrne), pai de Arthur, conheceu e apaixonou-se pela mãe do personagem, que até então era casada com um de seus maiores rivais. Para conseguir o amor de sua amada, Uther pediu para que Merlin (Nicol Williamson) ajudasse-o a infiltrar-se nos aposentos da moça com uma magia de disfarce, ao que o mago atendeu em troca de uma promessa: o primeiro fruto daquela união deveria ser entregue a ele. 9 meses depois, Merlin retorna e, como prometido, leva o recém nascido Arthur para ser criado e educado como o futuro rei dos bretões.
Um salto no tempo nos leva até a cena mais icônica da saga, que é a retirada da Excalibur da pedra. Athur (Nigel Terry), já adulto, consegue sacar a lendária espada da rocha na qual seu pai a havia incrustado, sendo reconhecido daí em diante como o rei que unificaria o território da futura Inglaterra sob o lema de “uma terra, uma lei”. Seguem-se cenas de batalhas grandiosas, a formação da célebre “Távola Redonda”, a construção de Camelot, o casamento de Arthur com Guenevere (Cherie Lunghi), o início de sua amizade com Lancelot (Nicholas Clay), o romance proibido entre Lancelot e Guenevere (que só não é o ‘chifre’ mais famoso da literatura porque temos o eterno caso Capitu/Bentinho/Escobar), a busca pelo Santo Graal e, finalmente, o embate entre Arthur e sua irmã, Morgana (Helen Mirren, lindíssima), que valeu-se de um relação incestuosa para conceber Mordred (Robert Addie), filho que deveria destronar Arthur e tornar-se o novo soberano dos bretões.
A ambientação, sem dúvidas, é o ponto forte aqui. Valendo-se de figurinos, cenografia e coreografias de batalhas que resistiram ao teste do tempo (lá se vão 40 anos!), Boorman apresenta lutas grandiosas que tornam-se ainda mais espetaculares quando olhamos para as produções atuais e vemos que, atualmente, o mesmo tipo de material tem sendo gerado quase que exclusivamente com o uso de CGI. Acredito que sejam essas referências visuais, aliadas a apresentação de ideias como o código de conduta dos cavaleiros, o misticismo dominante e a percepção de que o rei representa a vontade de Deus na terra (o tal do Absolutismo de Direito Divino teorizado por caras como Jacques Bossuet e Jean Bodin), que fizeram o historiador Marcelo Cândido indicar Excalibur como um bom exemplar de produto sobre a Idade Média, o que de fato ele é.
Minhas ressalvas ficam por conta da duração: achei puxado 2hrs20min de filme. Além de ser praticamente inviável exibi-lo na íntegra na sala de aula (com horários de 50min, eu levaria quase 2 semanas, mas isso não é bem um ‘defeito’, né), algumas partes claramente duram mais do que o necessário e poderiam ter sido melhor editadas, como o romance entre Lancelot e Guenevere e a busca pelo Graal. A extensão dessas subtramas, aliás, fazem com que, em comparação, o confronto final entre Arthur e Mordred pareça corrido, quase um anticlímax.
Foi bom ver Excalibur, tanto por fazer “check-in” em um clássico, quanto por reforçar o meu repertório sobre a Idade Média. Como material didático, porém, seguirei usando por ora o episódio 01 da primeira temporada da série (Des)Encanto, que é curto, bastante atual e trata de forma mais acessível e bem humorada os temas propostos.