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Doutor Estranho (2016)

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doutor-estranho2016 foi um ano de reafirmação para a Marvel. Por mais que, desde 2008, a empresa tenha feito a alegria da comunidade nerd com os muitos lançamentos do MCU (Marvel Cinematic Universe ou Universo Cinematográfico Marvel), a verdade é que a abordagem mais psicológica (e ruim) do Homem de Ferro 3, bem como as recepções mornas do público a grandes apostas do estúdio (como Vingadores: Era de Ultron e Homem-Formiga) fizeram com que muita gente questionasse se a fórmula dos filmes de super-heróis não havia se esgotado.

A resposta da Marvel foi rápida e eficaz. Primeiro, a empresa nos deu o ótimo Guerra Civil, produção que não só mostrou sua superioridade em relação à DC, sua concorrente direta, quanto resgatou o querido Homem Aranha das garras da Sony (isso sem falar na apresentação pra lá de promissora do Pantera Negra). Agora, com o lançamento do Doutor Estranho, ela mostra que é possível expandir a fórmula do MCU (cenas de ação fantásticas e muito humor) conciliando-a com a atuação de um dos maiores atores da atualidade e com um visual soberbo e conceitual.

Dr. Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) é um respeitado neurocirurgião que entra em desespero após perder sua capacidade de operar devido a um acidente de carro que esmaga suas mãos. Strange passa por uma série de procedimentos cirúrgicos para tentar restabelecer suas habilidades mas, como não obtém sucesso em nenhum deles, acaba viajando para a Ásia atrás de uma promessa de cura que, disseram-lhe, poderia ser encontrada em um antigo e misterioso monastério. É então que, sob a tutela do Ancião (Tilda Swinton), Strange aprende os segredos da magia e vê-se repentinamente no meio de uma batalha milenar contra Dormammu, entidade ancestral que planeja anexar a Terra aos seus domínios.

doutor-estranho-cena-3Aproveitei o feriado de finados para assistir Doutor Estranho na pré-estreia, algo que eu não fazia desde o começo do ano. Comprei o combo de bugigangas do Cinépolis (balde de pipoca personalizado + chaveiro do Olho de Agamotto) e sentei na poltrona horrorosa do cinema as 00:15 (dia 01 para 02) impressionado com a quantidade de pessoas que resolveram fazer o mesmo. Considerando que trata-se de um “filme de origem”, desses que apresentam o personagem e sua história, e que o Doutro Estranho não é lá um dos heróis mais conhecidos da Marvel (não tanto como o Hulk ou o Thor, por exemplo), a sala estava bem cheia. Para alegria geral, o que foi mostrado na tela fez valer a pena passar parte da madrugada acordado.

De cara, me chamou a atenção o fato da Marvel ter mudado a apresentação do logo da empresa. Sabe aquela sequência onde são exibidos algumas páginas das HQ’s antes que a palavra “MARVEL” surja? Colocaram no lugar uma sucessão de pequenos clipes das versões cinematográficas dos heróis retirados dos filmes anteriores. Ao meu ver, esta alteração (que ficou bem legal) é um sinal positivo de que a empresa tem consciência e orgulho da solidez do material que ela produziu ao longo dos últimos 8 anos. “O MCU deu certo e está na hora de elevá-lo a um novo patamar”, eis o recado.

doutor-estranho-cenaAcabou, portanto, aquele tempo em que falar de universos paralelos, magias e entidades ancestrais era algo arriscado. O começo de Doutor Estranho é frenético e diferente de tudo aquilo que havíamos visto no MCU até agora. O vilão Kaecilius (Mads Mikkelsen), um dos seguidores de Dormammu, rouba a página de um livro de magias proibidas e o Ancião utiliza seus poderes para impedi-lo. Fora a pancadaria tradicional, que é muitíssimo bem coreografada pelo diretor Scott Derrickson (um cara que fez o nome no gênero de terror com títulos como O Exorcismo de Emily Rose e A Entidade), salta aos olhos os efeitos especiais utilizados na alteração da realidade física dos ambientes provocadas pelas habilidades dos personagens. Peguem os melhores e mais insanos momentos do conceitual A Origem, adicionem algumas magias que são conjuradas em meio a uma infinidade de runas e deem a tudo isso a profundidade de um 3D pelo qual vale a pena pagar: eis a receita que fará tua mente explodir nos primeiros minutos do filme.

doutor-estranho-cena-5A calmaria que se segue, momento onde o Doutor Stephen Strange é apresentado em seu local de trabalho antes do acidente que levaria-o para o olho do furacão, é o tipo de cena que tinha tudo para ser banal devido a previsibilidade do conteúdo. Um sujeito, que conhece uma garota legal (Rachel McAdams), passa por alguns problemas, ganha habilidades, treina e enfrenta uma grande ameaça: com uma ou outra variação, eis o resumo do “filme de origem”, e é a sétima vez que vemos isso dentro do MCU. Doutor Estranho não foge muito deste esquema, mas o talento do Benedict Cumberbatch revigora a fórmula e torna a parte de drama do roteiro tão interessantes quanto as cenas de ação. Com sua voz dracônica, o ator brilha em diálogos repletos de arrogância e citações à cultura pop (atenção à referência ao Máquina de Guerra) e os ensinamentos que ele aprende, principalmente nos diálogos com o Ancião (Não é sobre você, Strange), são o tipo de coisa que dá para levar para fora da sala do cinema.

doutor-estranho-cena-2Doutor Estranho tem seus problemas. As cenas do treinamento, aquelas onde o herói desenvolve suas habilidades com Mordo (Chiwetel Ejiofor), poderiam durar mais. A edição sugere passagens de tempo e o fato do Strange ser muito inteligente pode até justificar a rapidez com que ele domina algumas técnicas, mas ainda assim fiquei com a impressão de que o cara já estava preparado demais quando enfrentou o Kaecilius pela primeira vez. Não ficou natural eles lutando de igual para igual. Também achei que poderiam ter caprichado mais no clímax do filme, velha pedra no sapato da Marvel (desta vez, o conflito é mais ‘cerebral’, por assim dizer, do que físico), e nas piadas. Beyoncé, Adele e Eminem? Haha. Senha de Wi-fi? Nem Esbocei.

doutor-estranho-cena-4Feitas essas considerações, digo que o saldo de Doutor Estranho é MUITO positivo. A caracterização do personagem (Olho de Agamotto + Capa de Levitação + cavanhaque do Cumberbatch) também deve ser citada como ponto alto da produção (aprende, Fox) e o espetáculo visual criado pelo diretor Scott Derrickson, principalmente na cena de abertura e quando o Strange conhece o “multiverso”, é o tipo de coisa que faz a gente ter certeza que valeu a pena comprar um ingresso e ir ao cinema (já há quem diga, aliás, que os efeitos especiais do filme são tão bons que não será surpresa se eles renderem para a Marvel seu primeiro Oscar).

Doutro Estranho é mais de um mesmo que a gente aprendeu a amar. A Marvel continua de parabéns por respeitar o desenvolvimento de seus personagens (aprende, DC) e por conseguir corrigir seus erros e criar novos atrativos dentro da fórmula que ela mesmo desenvolveu. Fica agora a expectativa para sabermos como o Doutor Estranho irá interagir com os Vingadores (um das duas cenas pós-crédito dá uma dica) e como os eventos desse filme afetarão as outras produções do MCU.

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O Grande Hotel Budapeste (2014)

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O Grande Hotel BudapesteDesde a criação desse blog, realizei a cobertura de 4 Oscars, e TODO ano é exatamente a mesma coisa: no final de dezembro/começo de janeiro saem os indicados ao Globo de Ouro (conhecidamente uma prévia da festa realizada pela Academia) e o desespero para ver e resenhar todos os títulos antes da premiação começa. Esse ano, aliás, foi um dos mais sofridos nesse sentido pois, além de ter acabado de casar, eu estava completamente sem tempo conduzindo algumas obras em casa. No final, tudo deu certo e eu acabei realizando um dos meus melhores trabalhos até então (consegui ver até um documentário), mas definitivamente não quero passar por essa canseira de novo. Pensando nisso, decidi começar a procurar por concorrentes em potencial desde já, o que me levou até esta página. A maioria dos títulos aí listados ainda não está disponível e, claro, até o momento, tudo não passa de especulações, porém, mesmo assim, decidi confiar e explorar a lista desejando profundamente que o esforço me ajude a evitar a habitual fadiga do começo do ano. Dito isso, declaro aberta a cobertura do Oscar 2015 (UHULLL!!!! rs) e lhes apresento o O Grande Hotel Budapeste.

O Wes Anderson é conhecido por criar personagens caricaturais e por apoiar sua narrativa em recursos visuais, tais como caixas de texto, cores fortes e edição marcante, que dão a seus filmes um divertido tom de fábula. Mais do que isso, Anderson também costuma apresentar pontos de vista incomuns sobre os temas que ele escolhe para trabalhar, e um bom exemplo disso é a inversão de maturidade entre adultos e crianças que ele promove no Moonrise Kingdom. O ponto aqui é que, indiscutivelmente, estamos falando de um diretor criativo, daqueles de quem sempre podemos esperar algo no mínimo “diferente” quando vamos assistir um de seus filmes, e é exatamente isso que O Grande Hotel Budapeste oferece desde a sua primeira cena.

O Grande Hotel Budapeste - Cena 3Sentado em uma biblioteca, um escritor divaga sobre o processo de criação literária. Segundo ele, ao contrário do que a maioria das pessoas acredita, os escritores não são fontes inesgotáveis de criatividade, sendo que grande parte do material que eles produzem é apenas o relato de alguma história que eles ouviram algures. Tendo acabado de publicar um livro chamado O Grande Hotel Budapeste, ele passa então a contar como tomou ciência daquilo que escreveu.

Quando esse escritor fala sobre o ato de escrever, temos um daqueles momentos que agradam imediatamente quem gosta de metalinguagem. Nota-se depois, no entanto, que não é exatamente isso que está acontecendo ali. O homem, que fala com propriedade para uma câmera como se estivesse gravando um documentário ou algo que o valha, tem o seu discurso interrompido o tempo todo por um de seus netos que está brincando no local. A inocência e a alegria do menino contrastam significativamente com o tom quase enfadonho do velho. Na hora que isso acontece, achei engraçado e só, mas depois (principalmente após um diálogo sobre motivações que acontece próximo ao final da trama) fui ficando cada vez mais convencido de que, por trás de todos aqueles gracejos, está um posicionamento do diretor contra a pomposidade metafórica e a retidão narrativa.

O Grande Hotel Budapeste - Cena 4Essa reflexão sobre o longa nasceu principalmente da vontade de compreender os motivos que levaram “especialistas” a colocarem-no entre os prováveis indicados ao Oscar. Digo isso porque, verdade seja dita, o fato de O Grande Hotel Budapeste criticar indiretamente um padrão de narrativa e/ou tentar reformulá-la é o menor de seus “atrativos”. O que é bom aqui, bom mesmo, são os tais personagens caricatos típicos do diretor e as situações absurdas em que ele coloca-os. A tal história que o escritor conta no início diz respeito aos dias gloriosos do Grande Budapeste Hotel, uma construção luxuosa comandada pelo excêntrico M. Gustave (Ralph Fiennes) localizada na fictícia República de Zubrowka. Gustave é um amante da literatura e das mulheres idosas que vê-se envolvido em uma conspiração após uma uma de suas muitas “namoradas” falecer e deixar-lhe uma fortuna. Auxiliado pelo garoto de recados do hotel, Zero (Tony Revolori), ele passa por um bocado de situações absurdas e perigosas enquanto tenta provar sua inocência e salvar a própria vida.

O Grande Hotel Budapeste - Cena 2Um amigo até havia me indicado esse filme no começo do ano mas, como eu estava um tanto quanto atarefado na época, acabei ignorando a dica, ainda mais por ele ter fundamentado-a em cima de elogios ao Ralph Fiennes, de quem nunca fui fã. Não que eu não goste dele, mas até hoje eu não havia visto nada de excepcional nele ao ponto de assistir um filme apenas porque ele está no elenco. De agora em diante, consigo me ver tranquilamente pesquisando a filmografia do cara e escolhendo algo para ver ou, no mínimo, ficando empolgado por ver o nome dele relacionado a alguma produção que eu for assistir. O Grande Hotel Budapeste também é um daqueles longas que contam com a participação de vários atores conhecidos (para citar apenas alguns, dão as caras por aqui F. Murray Abraham, Adrien Brody, Edward Norton, Willem Dafoe, Jude Law, Bill Murray, Saoirse Ronan, Harvey Keitel e Tilda Swinton), mas vê-lo é, sobretudo, ver o show que o Fiennes dá com suas caretas, gritos e citações literárias que ele dispara nos ouvidos do pobre Zero. Li que o personagem foi escrito para o Johnny Depp, e não há dúvidas que o ator faria um ótimo trabalho com sua conhecida excentricidade, porém é notório que o Fiennes aproveitou a chance para entregar uma das melhores interpretações de sua carreira. Obviamente, preciso ver o trabalho dos outros concorrentes ao Oscar de Melhor Ator antes de falar qualquer coisa mas, com base no que vi aqui, é possível dizer que ele concorreria com chances reais de vencer.

O Grande Hotel Budapeste - Cena 5À direção e roteiro inovadores do Wes Anderson e à interpretação genial do Fiennes, somam-se como atrativos ao filme as já comentadas participações de vários atores (é sempre prazeroso ver o F. Murray Abraham falando com aquele jeito cavalheiresco e o Bill Murray com sua eterna cara de tédio) e as piadas de humor nonsense que o diretor produz das situações mais inesperadas. Em um determinado momento, por exemplo, o personagem do Willem Dafoe (quase uma reedição do que ele fez no A Sombra do Vampiro) foge de Gustave e Zero em uma pista de esquiar. A movimentação dos personagens nessa cena é feita de uma forma tosca, meio lenta e anti natural, de modo que eles ficam parecendo brinquedinhos. Quando tu pega-se rindo da forma como as coisas/personagens movimentam-se em um filme, tu precisa reconhecer que algo deu certo. Levando isso tudo em consideração, torço para que O Grande Hotel Budapeste figure entre os indicados ao Oscar e ganhe o devido reconhecimento mas, caso isso não aconteça, já fico feliz por ter assistido um filme tão completo e divertido.

O Grande Hotel Budapeste - Cena

Precisamos Falar Sobre Kevin (2011)

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Precisamos Falar Sobre KevinRecentemente, li o Fédon do Platão, livro onde o filósofo utiliza as últimas horas de vida e diálogos de seu mestre, Sócrates, para desenvolver suas próprias teorias sobre a imortalidade da alma e transcendência. A  leitura é pesada, ocasionalmente maçante e não foram poucas as vezes que eu permiti-me discordar dos raciocínios desenvolvidos (entre outras coisas, Platão utiliza analogias para “provar” temas como reencarnação :S), mas há ali uma discussão sobre essência e “verdade” que me agradou bastante. Tentarei, sem estender-me demais no assunto, explicar o que eu entendi dessa teoria e como isso aplica-se a questão da maldade absoluta que Precisamos Falar Sobre Kevin aborda.

Antes de tirar a própria vida bebendo cicuta, Sócrates utilizou o exemplo do número 3 para convencer seus discípulos de que algumas idéias são absolutas e eternas enquanto outras, apesar de remeterem as mesma idéias, permitem variações e relativizações. O 3 seria uma idéia fechada em si mesma, inquestionável enquanto representante do conceito da trindade. O “ímpar”, por sua vez, pode ser associado ao três, mas não podemos dizer que o 3 É ímpar, uma vez que esta é apenas uma de suas CARACTERÍSTICAS e não a sua essência, já que essa mesma divisão/classificação/CARACTERÍSTICA também aplica-se ao 1, 5, 7, etc e, portanto, não configura unidade.

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Dito isso, vamos a questão da maldade. O desenvolvimento das ciências humanas nos últimos séculos contribuiu significativamente para flexibilizar certas questões morais que, em determinados períodos da história, foram analisados (e julgados)  através da dicotomia bem/mal. O dinheiro, é claro, financiou a construção do meio tom chamado purgatório durante a Idade Média mas, no geral, o moralismo católico daquela época oferecia o céu com uma mão e o inferno com a outra. Atualmente, o mundo já não é mais tão preto e branco assim e, não raramente, vemos pessoas defendendo assassinos e assaltantes argumentando que eles são resultados do meio pobre e violento onde nasceram (o estereótipo frequente é o morador da favela filho de um traficante com uma prostituta) e que, portanto, não podem ser classificados ou julgados da mesma forma que alguém nascido em berço de ouro ou, para atualizar o termo, como um “filhinho de papai”.

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Mesmo reconhecendo que o meio influencia, mas não determina, o conceito de livre arbítrio cambaleia frente à luta pela sobrevivência. O mal saiu do colo do capeta para transformar-se na sujeira que Deus varreu para debaixo do tapete após um trabalho feito nas coxas. Desse ponto de vista relativizado, o assassinato cometido pelo “favelado filho de/da puta” está para a maldade assim como o ímpar está para o 3, ou seja, é sim algo que pode ser caracterizado como “errado” (considerando que bem=certo e mal=errado) mas que não é errado em absoluto. Saber que há um “motivo” por trás de um ato de crueldade não diminui nossa indignação nem justifica a ação, mas nos tranquiliza, de certa forma, porque a explicação nos fornece uma sensação de que há uma certa lógica no mundo, algo que podemos controlar e, quem sabe, mudar. Precisamos Falar Sobre Kevin é um pouco mais “conservador” sobre essa questão e, com uma história verdadeiramente desoladora, parece sugerir que esse controle que julgamos ter sobre a maldade não passa de mera ilusão devido ao fato de que, tal qual o 3, às vezes ela aparece em sua forma absoluta e inflexível. Isso dá medo, muito medo.

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Eva (Tilda Swinton) é uma mulher comum, que transa com um cara comum (Franklin, interpretado pelo John C. Reilly) em uma situação comum (pós-festa, embriaguês, foda-se a camisinha). O trivial dá mais um passo à frente quando ela descobre-se grávida e casada com Franklin. Kevin (Jasper Newell/ Ezra Miller), o resultado visto após o nono mês, é tão fruto do capeta quanto músicas de axé com refrões demoniacamente pegajosos.

Agora vai uma analogia do tipo Platão: Se você está lendo isso, você está vivo e, se você está vivo, você já presenciou alguma criança dando birra. Confessemos, juntos: a nossa primeira reação SEMPRE é atribuir a culpa aos pais. CLARO que aquela coisinha linda guti-guti está chorando e esperneando devido a alguma coisa que o pai fez ou, na maioria dos casos, deixou de fazer, como comprar um doce, fazer uma brincadeira ou, principalmente, educar corretamente. Bater, então, é assinar atestado de incompetência e reservar com antecedência um lugar no inferno. Não será eu quem dirá que quem pensa assim está errado, mas aqui, nesse filme da diretora Lynne Ramsay, adaptação do livro escrito pelo Lionel Shriver, encontramos argumentos assustadores para acreditarmos que nem sempre a culpa é dos pais.

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Kevin simplesmente odeia a mãe. E quando eu digo odeio, eu não estou me referindo a fazer beicinhos e coisas do tipo. Tendo desenvolvido precocemente um raciocínio aguçado, o garoto pragueja contra sua progenitora, manipula o pai contra ela e faz de tudo, inclusive cagar propositalmente na fralda que acabara de ser trocada, para irritar e testar os limites de Eva.

A narrativa em Precisamos Falar Sobre Kevin não é linear, o que significa que passado e presente alternam-se na tela constantemente para lançar questões e problemas que só serão respondidos após longos e reveladores flashbacks. A Eva das primeiras cenas, uma mulher psicologicamente destruída, por exemplo, não lembra em nada a personagem vigorosa, paciente e racional que vai para a cama com Franklin em uma cena posterior. Essa quebra cronológica, engenhosa e muito bem executada, coloca-nos uma questão que remete as divagações do início do texto: O que Eva fez com o filho para que ele se comportasse daquela maneira? O assustador aqui é que, quando as peças do quebra-cabeças vão sendo colocadas em seus devidos lugares, a história revela apenas os motivos da decadência da sanidade mental da personagem, que enfrentou uma luta inglória contra um adversário que nunca poderia ser vencido.

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O mito grego diz que Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, cedeu a curiosidade e, contrariando um conselho, abriu uma caixa e espalhou o mal pelo mundo. Da mesma forma, Eva (coincidência ou não), o nome da primeira mulher da teologia cristã e da personagem desse filme, tentada pela serpente (sem camisinha rs) acaba sendo a responsável por trazer o mundo a sementinha do mal chamada Kevin. Podemos atribuir o comportamento do garoto a problemas psicológicos? Sim, já que desde pequeno ele apresenta características psicopatas (matar animais, etc) que, de certa forma, adiantam no imaginário do espectador àquela ação macabra que ele comete no último ato. Podemos sim tentar entender e relativizar a maldade do personagem mas, pessoalmente, eu o vi como a expressão absoluta do mal, algo que não poderia ser mudado de forma alguma, algo que precisa ser reconhecido como tal e, como o título convida, algo sobre o qual precisamos conversar, por mais que dê medo olhar diretamente nos olhos do caramunhão.

Como essas divagações já denunciam que eu adorei o filme e recomendo-o fortemente, acrescento para fechar que esse Ezra Miller é um ator que merece ser observado de perto. A caracterização sofisticada e cínica que ele imprime ao personagem e o ótimo trabalho que ele realizou como o purpurinado Patrick no As Vantagens de Ser Invisível sugerem que estamos diante do início de uma carreira promissora.

Precisamos Falar Sobre Kevin - Cena 2