Quando eu era criança e estava na pré-escola, a professora me esqueceu dentro da sala na hora do recreio. O sinal tocou, ela enfileirou a molecada e saiu. Eu até cheguei a entrar na fila, mas na última hora lembrei que eu havia esquecido a minha caneca no armário (não dá para ir para o recreio sem uma caneca) e fui pegá-la. Quando me virei, a porta estava trancada e eu estava sozinho. Foram os 15 minutos mais longos da minha vida. Chorei, gritei o nome da professora (e o da minha mãe) e, no fim, tentei chamar a atenção de algum coleguinha através do buraco da fechadura, tudo em vão. Quando a professora voltou, ela encontrou uma mistura confusa de remela, catarro e desespero sentada num canto da sala. Poucos minutos depois, ela me pagou um saquinho de pipoca e um copo de refrigerante no barzinho da escola e pediu para que eu não contasse nada para a minha mãe. Eu nunca contei (se você está lendo isso: desculpa, mãe), mas também nunca esqueci.
Revivi essa lembrança horrorosa numa tentativa de estabelecer um paralelo emocional com a história do pequeno Saroo (Sunny Pawar), mas a verdade é que não há comparação justa entre ficar preso no recreio e ser esquecido numa estação ferroviária. Saroo deveria passar o dia todo deitado em um banco até que o irmão voltasse do trabalho. Ele esperou, dormiu, esperou mais um pouco e nada do cara aparecer. Quando finalmente decidiu sair para procura-lo, Saroo viu-se preso num trem em movimento que levou-o para Calcutá, cidade que fica a mais de 2 mil quilômetros de sua residência. Saroo, um menininho de 5 anos de idade que provavelmente também gostaria de ter uma caneca no recreio, viu-se então sozinho numa das maiores cidades da Índia.
Lion: Uma Jornada Para Casa é baseado em fatos reais e mostra como, 25 anos após descer na estação de Calcutá, Saroo (Dev Patel) partiu em busca de sua família. Entre perder-se e encontrar os seus, Saroo viveu nas ruas, passou fome, foi parar em um orfanato e só teve um lar quando foi adotado por um casal australiano (Nicole Kidman e David Wenham). É uma história essencialmente triste que o diretor Garth Davis conta dando um soco no nosso estômago cena após cena. É válido avisar que você tirará um ou dois ciscos dos olhos durante a sessão.
Os conflitos psicológicos do roteiro tornam-se mais pesados à medida que a trama avança (Saroo, já adulto, deseja reencontrar sua família mas teme que isso cause desgosto nos seus pais adotivos), porém é o início que deixa a gente com o coração apertado. O ator Sunny Pawar é muito bonitinho, do tipo que dá vontade de apertar as bochechas, e é muito ruim vê-lo lutando para sobreviver, gritando no meio de uma multidão que não quer ouvi-lo e que não pode entende-lo (Saroo fala hindi; em Calcutá o idioma falado é Bengali). As coisas melhoram um pouco para Saroo após a adoção, mas antes disso tu precisará vê-lo implorando em vão por ajuda enquanto o trem leva-o para longe de casa (foi aí que a lembrança do primeiro parágrafo bateu forte) e, pior, vê-lo dormindo em cima de um papelão no chão sujo da estação de trem. A impotência do personagem para salvar a si mesmo e a tristeza que pode ser lida nos olhos dele fazem o peito doer e colocam em xeque nossa fé na humanidade.
O diretor Garth Davis mostra uma Índia pobre, suja e cheia de pessoas dispostas a explorar a inocência alheia, mas, no fim, ele também nos oferece um pouco de pipoca e refrigerante para compensar nossa gastura. O roteiro argumenta que, da mesma forma que existem pessoas ruins capazes de aproveitarem-se da fragilidade do próximo para obterem lucro (em um determinado momento, uma mulher tenta sequestrar/vender Saroo), também há quem pratica a austeridade e acredita num mundo melhor. Eu, que não sou lá um grande fã da Nicole Kidman (na maior parte do tempo, tenho a impressão que ela está atuando com ‘má vontade’), acabei rendendo-me à sinceridade do amor maternal que ela imprime à australiana Sue Brierley, a mulher que mudou o destino de Saroo (e de mais uma criança) ao adotá-lo. Sue e o marido são ricos e oferecem todas as condições para que o personagem cresça em um ambiente saudável. O conforto não faz com que Saroo supere seu passado traumático, mas dá-lhe forças (e recursos financeiros) para iniciar a busca por sua verdadeira família.
Lion: Uma Jornada Para Casa tem uma história forte, envolvente e emocionante. Temas como a pobreza e o abandono infantil apoiam o roteiro mas não ditam o seu rumo, que privilegia a narrativa clássica, com começo, meio e fim bem definidos, sem grandes digressões, flashbacks e ponderações. Fora o final, que mistura doses cavalares de alegria e tristeza (a revelação sobre o motivo do irmão de Saroo ter abandonado-o na estação é devastadora), não importei-me muito com a fase adulta do personagem. Ele envolve-se com uma garota (Rooney Mara) e vive o dilema de não saber o paradeiro de sua família. É isso, nem ruim, nem fantástico. A parte da infância, no entanto, é espetacular. Apoiado no carisma do garotinho e numa fotografia exuberante (observem a beleza dos raios solares naquela cena ‘das borboletas’), o diretor construiu uma história triste, porém irresistível, que faz a gente lembrar do quão bonito e forte é o amor que une mãe e filho. Lion: Uma Jornada Para Casa concorre a 6 Oscars, dentre eles o de Melhor Filme, e, por mais que ele não deva ganhar nenhum (Melhor Fotografia, talvez?) vale a pena vê-lo para apaixonar-se e torcer pelo garotinho que sorri enquanto carrega pedras para fazer a mãe feliz.