Falar sobre o método da escrita e comentar quais ideias me motivaram a escrever e o que foi mais ou menos importante para escolher o filme criticado, atualmente, é uma das minhas abordagens favoritas na hora de produzir textos para o blog. A metalinguística, o escrever sobre o ato de escrever, permite-me avaliar e criticar minhas resenhas, como se eu estivesse escrevendo-as e lendo-as ao mesmo tempo, escolhendo, simultaneamente, o que gosto e o que preciso eliminar nas minhas abordagens.
No caso de Yojimbo, a minha intenção inicial era fazer a ligação entre o filme e seu “remake” hollywoodiano, o Por um Punhado de Dólares do Leone/Eastwood, comentando a grandeza do trabalho do Kurosawa tendo em vista tudo aquilo que ele influenciou. É um caminho que eu costumeiramente trilho por aqui quando vou falar sobre algum clássico, mas pensar sobre ele me fez querer ir em outra direção dessa vez. Ok, influenciar um filme que é considerado um dos pilares do western norte americano é um fato digno de nota, mas não foi por isso que eu decidi assistir Yojimbo: o que, verdadeiramente, me trouxe até aqui e o que eu gostaria de comentar com vocês é o processo pessoal que hoje me permite sentar para ver um filme antigo da mesma forma que eu sento para ver um lançamento repleto de efeitos especiais. Considerando os benefícios que tiro disso, acho que vale a pena compartilhar a experiência.
Quando escrevi sobre o Os Sete Samurais, que também é do Kurosawa, gastei algumas linhas do texto para falar sobre como conheci e reagi inicialmente ao trabalho do diretor. Estranhei, ri e critiquei o Rashomon, que é um filme preto e branco japonês de 1950. Os meus argumentos eram justamente esses: filme preto e branco japonês de 1950. Até onde a minha mente adolescente conseguia ir, a simples combinação dessas palavras/características já era suficiente para condenar uma obra. É bom lembrar disso porque, mais do que sentir vergonha de mim mesmo, consigo ver que os anos livraram-me de alguns preconceitos e ajudaram-me a encarar o cinema de forma mais madura, menos óbvia, e isso tem me ajudado a apreciar alguns clássicos não somente por tudo aquilo que eles representam historicamente, mas sim porque eles, de fato, são bons e divertidos.
Quando dei o play no Yojimbo, fiz questão de perguntar à minha esposa o que ela esperava dele que, jocosamente, eu defini como um “filme preto e branco japonês de 1961”. A resposta dela, com a qual eu tive de concordar imediatamente, foi a de que esses filmes apresentam relações e sentimentos que, muitas vezes, não nos são contemporâneos. Esse olhar para o passado, juntamente com as diferenças culturais típicas da cultura japonesa, por si só, já seriam motivos suficientes para ela dedicar um pedaço do dia para assistir um filme. Bingo, casei com a mulher certa! O filme antigo, portanto, atrai por ser um produto de um período em que as pessoas tinham preocupações e sonhos diferentes daqueles que temos atualmente. Reconheço que, quando tu começa a assistí-los frequentemente, é possível perceber que eles também encaixam-se dentro de algumas padronizações e, depois de um tempo, tornam-se tão previsíveis quanto as produções atuais, mas balancear a apreciação deles com a de filmes novos, até o momento, foi uma das formas que encontrei para continuar descobrindo coisas novas dentro do mundo por vezes formulaico do cinema.
Yojimbo influenciou Por um Punhado de Dólares (experimentem ler o texto e compará-lo com a sinopse abaixo) mas, como não posso (ou quero) rastrear a origem da idéia, vamos deixar esses enigmas do tipo “ovo-galinha” de lado e concentrarmo-nos naquilo que ele traz de melhor, que é diversão que os elementos que nos parecem exóticos e o roteiro engenhoso são capazes de oferecer. No século XIX, os samurais, outrora defensores da realeza, viram seu estilo de vida cair em desuso e passaram a vagar procurando por alguém que estivesse disposto a pagar por seus serviços. Sanjuro (Toshirô Mifune), um desses guerreiros, chega com sua espada em uma cidade que vive ameaçada por duas gangues. Após matar rapidamente 3 sujeitos que o provocam e desrespeitam, o samurai recebe e recusa propostas para servir dos dois lados. Mais do que associar-se a uma das famílias que oprimem os trabalhadores da cidade, ele deseja acabar com todos os degenerados do local e, claro, lucrar em cima disso.
Temos aqui, deste modo, o roteiro tradicional do filme de western em que um estrangeiro desconhecido chega em uma cidade corrompida para resolver seus problemas. Vê-se também o confronto entre o conservadorismo e o progresso, em que os novos tempos (o liberalismo, o capitalismo, as gangues) são apresentadas como uma forma de vida degenerada quando comparados com o modelo anterior, o tempo dos samurais, tempo da honra e do respeito. Logo no começo da trama, por exemplo, Sanjuro presencia uma briga entre pai e filho em que o garoto diz que prefere morrer vivendo uma vida de aventuras do que sobreviver através dos anos comendo mingau de arroz. No final, após espalhar sangue por toda a cidade, Sanjuro deixa claro para o garoto o quão errado ele estava. Tradicionalista, a mensagem de Kurosawa caiu como uma luva para aquele é o mais americano dos gêneros cinematográficos.
Yojimbo, até mesmo pela proposta de seu personagem principal de não entrar em conflito direto com seus inimigos, é um filme mais cadenciado, que privilegia mais os diálogos do que as cenas de ação. É engraçado ver como Sanjuro utiliza sua inteligência para colocar as gangues para lutar entre si, poupando-lhe o trabalho de matar um por um. No entanto, quando a estratégia é descoberta e o combate torna-se inevitável, Kurosawa não decepciona e nos dá uma boa dose de pancadaria samurai. Eu, que assisti esse filme com o ótimo Os Sete Samurais em mente (talvez o maior de todos os longas do estilo já feitos), fiquei satisfeitíssimo com o que vi, principalmente quando ele enfrenta os “6 da cabana”, cena brutal e sanguinolenta que, filmada por Kurosawa, consegue expressar uma forma estranha e sutil de beleza.
Tudo o que vi e gostei certamente não teria o mesmo efeito se eu o fizesse através do prisma “filme japonês preto e branco de 1961”. Yojimbo, mais do que um clássico que qualquer fã, estudioso ou interessado por cinema deve conhecer e respeitar, é um filme divertido, com piadas atemporais (a covardia das duas gangues, que fazem de tudo para não brigarem, é impagável), humor negro (reparem naquele cachorro que anda tranquilo carregando uma mão no início), cenas muitíssimo bem coreografadas (observem a qualidade da movimentação dos atores antes dos duelos e as escolhas pontuais de ângulos que o Kurosawa faz), ótimas sequências de ação e uma atuação memorável do monstro Toshirô Mifune, ou seja, tudo que um filme precisa ter, seja ele novo ou antigo. Sinto-me feliz por, hoje, poder assistir uma obra dessas tal qual deve ser, sem preconceitos com a imagem e o som e tirando proveito do distanciamento temporal que, mais do que deixar os filmes “estranhos”, os tornam interessantes e prazerosos justamente por suas linguagens e valores que são diferentes daquilo que temos nas produções atuais.