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Noé (2014)

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NoéPerdoe-me pai, pois eu pequei e, ciente do meu erro, aceito de coração aberto essa punição que o Senhor me enviou em forma de filme. Há menos de um ano, no meu texto sobre o Guerra Mundial Z, relatei uma experiência terrível que eu tive no Cinemais em um dia de ingresso promocional. Naquela ocasião, entre brados e praguejamentos, prometi evitar o estabelecimento a todo custo nos dias de quarta feira mas, infelizmente, não consegui manter a promessa, motivo pelo qual eu me ajoelho diante de ti, ó pai, e peço-lhe: castigue-me, colocando do meu lado pessoas que fazem comentários medíocres durante todo o filme, eu mereço, mas devolva o talento do Darren Aronofsky, ó Senhor, ele é bom demais para ser punido com tamanho lapso criativo!

Rogo tão apaixonadamente pelo diretor de Pi, Fonte da Vida e Cisne Negro porque o considero um dos melhores profissionais do ramo produzindo atualmente em Hollywood e não quero acreditar que o que eu vi essa semana seja um indício de fadiga criativa. Mesmo considerando a dificuldade a priori que é adaptar a história (ou mito) de Noé devido a seus muitos absurdos, é preciso reconhecer que o trabalho do cara ficou abaixo da linha do aceitável.

Para quem não está por dentro da trama, Noé (Russell Crowe), filho de Lameque, neto de Matusalém (Anthony Hopkins) é encarregado pelo Criador, que fala-lhe através de um sonho, de construir uma arca para garantir a continuidade da vida no planeta. Em breve, lhe é revelado, um dilúvio implacável cairá dos céus, destruindo tudo e todos, como forma de punição à maldade que os homens espalharam pelo planeta. Mesmo desacreditado, Noé obedece as ordens e inicia a construção, o que lhe rende alguns inimigos e conflitos familiares.

Noé - CenaA “Arca de Noé” é uma dessas histórias que mesmo quem nunca leu a bíblia certamente já ouviu falar alguma vez na vida. Pessoalmente, e com todo o respeito que é possível um agnóstico ter para com o referido livro, eu considero-a como um dos maiores absurdos lá contidos, e olha que, avaliando o conteúdo como um todo, isso coloca-a em um patamar de bizarrice quase esquizofrênica. O meu ponto é: fé e racionalidade precisam dialogar. Olhar para a história de Noé e perceber as alegorias do discurso e tirar disso algum ensinamento é saudável, já acreditar literalmente que um homem construiu uma arca gigantesca e nela abrigou um casal de cada um dos animais do planeta é, no mínimo, preocupante. Todo caso, digo isso mais para deixar claro o que eu penso a respeito da tal história e fundamentar a minha crítica do que para zombar da crença alheia, ok?

Noé - Cena 2Dito isso, devo acrescentar que acreditei em Noé até o último minuto. Deixei de lado a minha descrença pessoal relacionada a história e a péssima impressão que o trailer me causou e fui no cinema para ver um filme da dupla Aronofsky/Crowe. Confio no poder de entrega e construção de personagens do ator desde que vi Uma Mente Brilhante e do diretor eu sempre espero uma visão complexa e desafiadora de histórias/temas já conhecidos. Em outras palavras, eu queria ver o que o Aronofsky tinha a dizer sobre Noé e como o Crowe iria representar um personagem que carrega em si uma ambiguidade tão grande. A decepção começou aqui: a adaptação do diretor é demasiadamente literal.

Introduzida por textos e imagens que retornam à Adão e Eva para explicar a origem do mal no mundo, a trama desenvolve-se posteriormente em cima dos eventos citados na bíblia: a revelação, a construção da arca, o dilúvio e o início do repovoamento. Do início ao fim, vemos Noé, sua esposa (uma Jennifer Connelly equivocadíssima no papel) e seus filhos vagando por terras arenosas e desertas buscando cumprir as ordens do Criador. O elemento fantástico, característica presente em diversas passagens da bíblia, como na Travessia do Mar Vermelho, é aproveitado por Aronofsky para criar seres gigantescos a la Transformers chamados Guardiões que auxiliam Noé em sua empreitada. É isso que vemos aqui: andanças intermináveis, a construção da arca, uma cena de batalha genérica épica (lugar comum nos filmes de ação atuais) entre Noé, os Guardiões e os chefes de tribos humanas, o dilúvio e… o repovoamento, tal qual está no livro. O tal ponto de vista diferente que eu esperava aparece, timidamente, apenas nos dilemas enfrentados pelo protagonista.

Noé - Cena 4Noé é escolhido devido a sua bondade pelo Criador (e continuo me referindo a ele dessa forma pois é assim que ele é tratado no filme; salvo engano, não falam em “Deus” em nenhum momento) para salvar os animais e a inocência do mundo. Descendente direto de Sete, um dos filhos de Adão, o personagem, contraditoriamente, acaba sendo responsável (ainda que indireto) pelo fim da humanidade tal qual ela era conhecida até então já que, avisado de que o mundo iria acabar, ele não deixa ninguém além de sua própria família entrar na arca. O peso dessa tarefa perverte a mente do homem, que vê-se em uma situação onde ele precisa deixar de lado a própria bondade que o destacou entre os demais para cumprir o plano que lhe foi revelado em sonhos. Crowe brilha no papel e constrói um personagem atormentado, por vezes até odioso, que é dobrado diante dos ditames divinos. A eterna luta entre fazer o que se deseja ou aquilo que é certo está muitíssimo bem representada aqui, mas é só isso que Noé tem a oferecer, e isso é muito pouco.

Noé - Cena 5Aronofsky fez um filme burocrático sobre uma história absurda. O que deveria ser, essencialmente, um drama sobre os conflitos morais de um homem, transformou-se em um filme de diálogos arrastados e pouco inspirados e cenas de ação meia boca cuja única passagem realmente memorável é aquela sequência que dá conta da criação do universo e da vida. Assisti esse perrengue do lado de um sujeito que narrou TODO o filme para a namorada dele. Excluindo-se a chance quase nula de a moçoila ser cega, só me resta aceitar a atitude do sujeito como uma punição por eu não ter cumprido a minha palavra. “Olha lá amor, agora ele vai morrer!” ARGH!

Noé - Cena 3