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Jason Bourne (2016)

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Jason BourneO Legado Bourne, tentativa de revitalizar a série Bourne no cinema após suas principais estrelas (o ator Matt Damon e o diretor Paul Greengrass) recusarem-se a realizar um quarto filme da franquia, não foi exatamente um longa ruim, mas é notório que houve pouca coisa na aventura do Aaron Cross (Jeremy Renner) capaz de empolgar os fãs antigos da série. Mesmo com uma recepção morna, porém, Cross deve ganhar uma segunda chance de cair nas graças do público em alguma data entre 2018 e 2020, mas é seguro dizer que o que todo mundo queria ver mesmo era a continuação direta dos eventos do já longínquo O Ultima Bourne (2007), que terminava com o Jason (M. Damon) escapando vivo após revelar para o mundo os detalhes obscuros das operações Treadstone e Blackbriar.

Cientes desse anseio dos espectadores, a Universal Pictures conseguiu trazer a dupla Greengrass/Damon de volta à franquia para expandir aquele mundo de espionagem e conspirações governamentais criado pelo escritor Robert Ludlum. O roteiro de Jason Bourne (que, ao contrário daqueles vistos na trilogia original, foi escrito exclusivamente para o cinema e não possui correspondente literário) é relativamente simples quando comparado com tudo o que foi feito anteriormente, mas ainda assim o talento do Greengrass para conduzir cenas de ação tensas e empolgantes garante um boa sessão e faz deste filme uma continuação para a série melhor e mais interessante do que aquela vista no Legado.

Jason Bourne - CenaO tempo passou e o cabelo do Bourne começou a ficar grisalho, mas, felizmente, não vemos aqui uma história de decadência física tal qual aquela bobagem que fizeram no Skyfall. A cena que abre o filme, aliás, serve justamente para mostrar que o personagem continua tão forte e letal quanto antes: numa rebimboca qualquer do mundo, vemos ele apagar um grandalhão com apenas um soco numa briga de rua. Depois de expor o governo americano, Jason queria passar o restante de seus dias no anonimato, mas informações obtidas por sua antiga parceira Nicky Parsons (Julia Stiles) revelam não somente que a Treadstone era apenas uma dentre tantas outras operações ilegais do governo quanto apontam novos detalhes sobre o passado do personagem.

Jason Bourne é isso, um filme repleto de novas cenas de pancadaria e perseguições de carro no qual nos contam um pouco mais sobre a vida do herói enquanto ele ainda chamava-se David Webb. Até então, imaginávamos que o personagem havia voluntariado-se para o projeto Treadstone (revelação que é feita no final do O Ultimato Bourne), mas não foi exatamente isso que aconteceu. Os dados descoberto por Nicky ajudam Jason a lembrar-se do pai em um triste episódio que foi fundamental para que ele aceitasse transformar-se em uma máquina de matar. O problema é que esses dados também sugerem que esse episódio foi armado por agentes da CIA para enganá-lo. É claro que o cara não deixará pedra sobre pedra até encontrar e punir os responsáveis pelo embuste.

Jason Bourne - Cena 3O diretor Paul Greengrass, que também escreveu o roteiro, até tenta trazer alguns elementos contemporâneos para enriquecer a história e torná-la atual (a questão da privacidade dos dados de usuários de internet, por exemplo, é uma clara referência a megacorporações como a Apple), mas a grande verdade é que Jason Bourne apenas requenta tudo aquilo que já havíamos visto e aprovado anteriormente ao longo da série. Um personagem importante é alvejado e morto por um tiro de sniper (A Supremacia Bourne), há uma perseguição fantástica/impossível de moto (O Legado Bourne), a figura do homem mauzão chefe da CIA (Tommy Lee Jones) contrapondo uma personagem feminina idealista (Alicia Vikander) na caça ao personagem (A Supremacia/ O Ultimato Bourne) e, claro, um assassino (Vincent Cassel) tão bom quanto o protagonista perseguindo-o durante toda a trama (A Identidade Bourne/A Supremacia). Essas semelhanças associadas a flashbacks e ao resgate de cenários reconhecíveis pelo público, como a tomada aérea da base da CIA em Langley, provocam no espectador aquele sentimento nostálgico de quem retorna para casa, mas não dá para deixar de lado o fato de que, na verdade, não é a primeira vez que estamos vendo aquele material.

Jason Bourne (2016)As cenas de ação são muito legais, daquelas que tu nem pisca para não perder o frenesi de destruição provocado pelos personagens, mas, apesar de funcionais, elas não tem o mesmo brilho daquelas vistas principalmente no A Supremacia Bourne. Lembram do Matt Damon usando uma revista (!!!) para detonar um vilão em uma luta espetacular e com pouquíssimos cortes da câmera dentro de uma casa? Não tem nada parecido com aquilo aqui. O Greengrass, que virou referência no gênero ação justamente pelo seu trabalho minucioso na série, parece ter rendido-se aos cortes vertiginosos e agora mostra tudo em ritmo acelerado e pouco compreensível. A imaginação do cara continua boa (precisa de muita criatividade para fazer uma perseguição de carro terminar dentro de um cassino rs) mas a técnica já foi bem melhor.

Jason Bourne é uma colcha de retalhos nostálgica de tudo o que a série fez até aqui. Poderia ter sido melhor executado? Sim. O roteiro poderia ser melhor elaborado? Sim, também poderia, mas, por ora, permitirei-me ficar feliz com o retorno do Matt Damon para o seu papel mais icônico e com o aparente reinício da franquia. Para um próximo filme, porém, espero algo que faça jus ao título de “inovadora” que a série sempre evocou.

Jason Bourne - Cena 4

A Garota Dinamarquesa (2015)

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A Garota Dinamarquesa Impliquei com o Eddie Redmayne por ele ter vencido o Michael Keaton na disputa de Melhor Ator do ano passado e depois senti um prazer deveras infantil por vê-lo mal em um filme péssimo, mas a grande verdade é que ele está ótimo no A Teoria de Tudo (ainda prefiro o Keaton rs) e que nada nem ninguém salvaria a ficção boba dos Wachowski do fracasso. Todo caso, se ainda restava alguma dúvida sobre o talento do ator britânico, essa dúvida encerra-se com o fantástico A Garota Dinamarquesa. Protagonizando o longa ao lado da sueca Alicia Vikander (que, para aumentar as chances ao Oscar, foi indicada como Melhor Atriz COADJUVANTE), Redmayne vale-se de um roteiro desafiador para provar de vez que ele é um dos grandes nomes do cinema atual. Deram-no o Stephen Hawking? Ele emulou com perfeição a boca torta, o pescoço dobrado e a voz robótica do físico. Deram-no uma transexual? Ele guardou o bingulim no meio das pernas e transformou-se na esplendorosa Lili Elbe, um dos primeiros casos registrados de alguém que realizou a cirurgia de mudança de sexo.

Dirigido pelo vencedor do Oscar Tom Hooper (O Discurso do Rei) e baseado no romance A Garota Dinamarquesa do escritor David Ebershoff, ficcionalização dos eventos reais da vida de Lili, o filme conta a história de Einar Wegener (Redmayne) e Gerda Wegener (Vikander), casal que ganha a vida na Dinamarca da década de 20 através da pintura. Em um determinado dia, visando pregar uma peça no público de uma mostra de arte, Gerda sugere que Einar vá até o evento travestido de mulher. O que começa apenas como uma brincadeira, porém, revela desejos e sentimentos que Einar trouxera guardado dentro de si durante toda a vida, e então progressivamente ele vai abandonando sua identidade masculina para transformar-se em Lili Elbe, uma coquete ruiva que começa a virar o pescoço dos homens da cidade.

Escrevi “transformar-se” ali no último parágrafo, mas, verdade seja dita, não é bem isso que o diretor nos mostra. Einar não transformou-se em Lili, Einar SEMPRE foi Lili. Assim sendo, o filme traz um posicionamento claro na polêmica e atual discussão sobre a origem dos transgêneros, defendendo que eles são como são devido a fatores genéticos, e não a esquizofrenias, perversões sexuais ou definhamento moral como alguns arguem. Eu, que não possuo conhecimento científico sobre o assunto e nem perco o meu tempo preocupando-me com a intimidade alheia, entendi o ponto de vista do diretor mas foquei mais no bonito processo de aceitação de si mesma que Lili enfrenta ao longo do filme e, claro, na beleza do amor incondicional que sua esposa lhe oferece.

Tom Hopper começa A Garota Dinamarquesa mostrando variadas e belas paisagens naturais que, posteriormente, revelam-se os cenários onde Einar passou a infância. Curiosamente, porém, o personagem (já adulto e trabalhando como pintor) insiste em reproduzir apenas uma dessas paisagens em suas telas, uma colina onde contam-se cinco árvores, que ele retrata sempre com tons sombrios. A medida que Einar vai aceitando-se como Lili, nota-se que ele também vai optando cada vez mais por cores mais claras para compor aquele cenário, alegoria que Hopper utiliza muitíssimo bem para descrever o estado de espírito do personagem. Quando finalmente Einar decide assumir-se como Lili, tanto para a esposa quanto para a sociedade, ele também deixa a pintura de lado, sinal de que, em outra boa alegoria do roteiro, ele está livre e não precisa mais reproduzir os padrões da natureza.

A Garota Dinamarquesa - Cena 4Conta-se que, na vida real, Gerda “aceitou” a decisão de Einar por ela mesma ser lésbica, ou seja, a continuidade da relação matrimonial era de interesse mútuo do casal no tocante a manter as aparências para a sociedade. Em sua abordagem da história, porém, Hopper preferiu apenas sugerir a homossexualidade da personagem (que age de forma bastante masculina, por exemplo, em uma cena inicial quando está pintando um retrato de um bigodudo) e mostrá-la como uma figura extremamente humana, alguém que é capaz de negar a própria felicidade para fazer o bem para quem ela ama. Naturalmente, Gerda sofre, acusa Einar de estar “jogando com ela” e tem crises de ciúmes quando pega-o com outros homens, mas o que realmente destaca-se na postura dela ao longo do filme é a compreensão que ela demonstra para com o desejo do marido de viver como Lili. Até mesmo quando os caminhos deles separam-se devido a um novo interesse amoroso da parte dela (vivido pelo bom ator Matthias Schoenaerts) e do desejo de Lili de realizar a arriscada cirurgia de troca de sexo, Gerda faz de tudo para ficar do lado de seu antigo amor e apoiá-lo em sua decisão de tornar-se uma mulher “completa”. Acredito que esse tipo de carinho e preocupação com o próximo, ainda que embelezado pela ficção, é mais importante do qualquer questão de gênero, não é mesmo?

A Garota Dinamarquesa - Cena 3Concorrendo a 4 Oscars, entre eles o de Melhor Ator para a Atuação primorosa do Redmayne (a linguagem corporal dele está assombrosa: ele realmente transformou-se em uma mulher), A Garota Dinamarquesa merecia estar entre os indicados a Melhor Filme. Pelo tema provocativo e pela direção impecável do Tom Hopper (a cena final, com tudo que o diretor conseguiu evocar em termos de liberdade utilizando apenas um lenço, é sensacional), este filme oferece uma experiência bem mais interessante e madura, por exemplo, do que o Ponte dos Espiões do Spielberg. Todo caso, se não houvessem injustiças, não seria o Oscar, certo? 😀 Ajudemos a minimizar a esnobada da Academia assistindo o filme e dando a ele a devida atenção que ele merece, trata-se de um dos grandes títulos lançados em 2015.

A Garota Dinamarquesa - Cena

Ex-Machina: Instinto Artificial (2015)

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Ex Machina - Instinto ArtificialEm um dos muitos diálogos bons de Ex-Machina: Instinto Artificial, Caleb (Domhnall Gleeson) cita uma frase famosa atribuída ao físico Robert Oppenheimer. “Eu tornei-me a morte, o destruidor de mundos”, teria dito Oppenheimer após obter sucesso na criação da bomba atômica. Com essa citação, Caleb faz um paralelo entre a criação do físico e Ava (Alicia Vikander), robô dotado de inteligência artificial desenvolvido por Nathan (Oscar Isaac). Seria essa nova tecnologia tão perniciosa para o futuro da humanidade quanto o foi a descoberta da quebra do núcleo atômico?

Ex-Machina é o debut na direção do Alex Garland, sujeito que até então era conhecido principalmente por ter escrito o roteiro do ótimo Extermínio. O filme concorre aos Oscars de Melhor Roteiro Original e Melhores Efeitos Especiais e, tal qual o Perdido em Marte, vem para comprovar o bom momento vivido no cinema pela ficção científica enquanto gênero capaz de utilizar tecnologia de ponta para falar de temas e sentimentos essencialmente humanos. Acreditem, não há nada mais humano em Ex-Machina do que o robô interpretado com maestria pela bela Alicia Vikander.

Eis a história: O programador Caleb, que é funcionário da Blue Book, a maior companhia de internet do mundo, vence um concurso que lhe dá o direito de ir passar uma semana em uma mansão junto com o Diretor Executivo da empresa, o inteligentíssimo e recluso Nathan. Levado de helicóptero até um local isolado nas montanhas, Caleb conhece seu chefe e então descobre o verdadeiro motivo de ele estar ali: Nathan quer que o programador aplique o Teste de Turing em sua maior criação, a garota robô Ava.

Ex-Machina - Cena 2O nome Turing lhe soa familiar, caro leitor? Se sim, é bem provável que você também tenha assistido O Jogo da Imitação, cinebiografia do matemático e cientista da computação Alan Turing que concorreu ao Oscar de Melhor Filme no ano passado. Resumidamente, o Teste de Turing diz que, se um humano interage com uma máquina dotada de inteligência artificial e, no final, não consegue diferenciá-la de um ser humano, então a máquina passou no teste. Dentre as muitas qualidades do roteiro, que também é assinado por Garland, certamente destaca-se a facilidade com a qual ele aborda termos e teorias da matemática e da computação. Durante os diálogos entre Caleb e Nathan, que seguramente correspondem a mais da metade do tempo de projeção, o conteúdo científico inerente ao tema do filme (inteligência artificial) é explicado de forma que qualquer um que esteja disposto a pensar um pouco seja capaz de entender. Pessoalmente, considero esse didatismo preferível à avalanche de informações técnicas que muitas vezes é vista em produções do gênero.

Ex-Machina - Cena 4Caleb testa Ava em “sessões” onde eles conversam um com o outro em uma sala separados por uma parede de vidro. Se inicialmente o personagem espanta-se com a capacidade de Ava de formular perguntas e emular comportamentos humanos, posteriormente ele começa a ter dificuldades reais para enxergá-la apenas como um robô. Para o espanto de Caleb, Ava mostra-se capaz de fazer piadas, realizar escolhas conscientes e demonstrar sentimentos. Naquela que talvez seja uma das cenas mais importantes de Ex-Machina, ela demonstra estar apaixonando-se por Caleb e então pede para que ele ajude-a fugir do local, alegando que Nathan, além de mentiroso, é uma pessoa perigosa. Nesse ponto, o roteiro demonstra todo o seu potencial ao nos colocar em dúvida sobre o que realmente está acontecendo naquela casa na montanha. Quem está testando quem ali? Nathan está testando Caleb? Caleb está testando Ava? Ava está testando todo mundo?

Ex-Machina - Cena 5Optando por deixar as sequências de ação de lado e concentrar-se mais nos bons diálogos e no dilema moral inerente ao tema, Garland encheu a sua história de referências a outros clássicos da literatura e do cinema. A trama de Ex-Machina tem ecos do A Tempestade do Shakespeare (um homem e sua filha em um local isolado sendo visitados por outro homem), do “Mito do Prometeus”, que a escritora Mary Shelley utilizou para criar o Frankenstein (a criatura que volta-se contra o criador) e, tanto no visual claustrofóbico repleto de tons vermelhos quanto na agonia de um robô que não quer ser desligado, lembra o 2001 – Uma Odisseia no Espaço do Kubrick. Bebendo de tão rica fonte, o diretor conseguiu produzir momentos geniais, como a cena em que Caleb, após conversar exaustivamente com Ava e perceber o quanto ela realmente acredita em si mesma, corta o próprio braço em um impressionante acesso de paranoia. Kubrick, que desenvolveu o conceito de outro filme sobre inteligência artificial (o A.I: Inteligência Artificial, do Spielberg) certamente ficaria orgulhoso.

Ex-Machina - Cena 3Deus Ex-Machina, conforme explicado aqui, é um termo oriundo do teatro grego que define a intervenção divina em uma história, de modo que todos os problemas dos personagens sejam instantaneamente resolvidos. Não foi por acaso que Garland valeu-se desse termo para nomear sua produção: na impressionante sequência final de Ex-Machina, quando todos os personagens revelam suas intenções e entram em conflito entre si, alguém conseguirá sair daquela casa para viver uma vida jamais sonhada até então, algo tão impensável quanto um milagre feito pelo próprio deus.

Ex-Machina traz um discurso deveras conservador no que diz respeito à tecnologia, mas não há alarmismo da parte de Garland. O que o diretor está dizendo, quando compara a inteligência artificial com a bomba atômica e nos mostra um robô que utiliza todos os recursos disponíveis para salvar a própria “pele”, é que precisamos ser responsáveis quando criamos algo. Se quem pensa e teoriza demais acaba não criando nada (como Nathan diz na ótima cena do ‘quadro’), quem age pautado por vaidade e impulso pode acabar sendo destruído por aquilo que criou. Ex-Machina: Instinto Artificial tem um visual soberbo, uma atuação literalmente sinistra da Vikander (ela não pisca!) e uma história conduzida de forma que tu entenda o que está acontecendo, identifique-se com os dramas dos personagens (quem nunca teve medo de ser substituído por alguém ‘melhor’?) e surpreenda-se no final, ou seja, ele é um desses filmes que não dá para deixar de assistir.

Ex-Machina - Cena

Anna Karenina (2012)

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Anna KareninaPrecisei de quase 7 meses para concluir a leitura do monumental Ana Karênina do Tolstói. Tal qual a outra obra prima do escritor russo, Guerra e Paz (que rendeu uma adaptação sofrível para o cinema), este romance é considerado um dos pilares da literatura mundial e lê-lo, apesar de prazeroso, exige tempo e paciência. O exemplar que eu tenho, uma edição em capa dura da editora Nova Cultural, tem 654 páginas com uma média de 400-500 palavras cada uma. É MUITA informação e, para quem não está familiarizado com o trabalho do cara, vale dizer também que ele não costuma ir, por assim dizer, “direto ao ponto”. Vários capítulos do livro em questão são extensas e detalhadas descrições psicológicas e visuais dos personagens e dos cenários em que eles vivem seus dramas. Dono de um dos maiores dons narrativos que esse mundo já viu, Tolstói nos fornece visões belas e precisas daquilo que ele está falando, mas não foram poucas as vezes que me peguei entediado, por exemplo, lendo sobre pormenores da constituição arbórea de uma floresta localizada nas proximidades da casa de um dos personagens.

Todo caso, concluída a leitura, não tive dúvidas de que eu acabara de apreciar uma dessas obras geniais sobre as muitas inquietações que afligem o espírito humano. Karênina, a aristocrata que dá título ao livro, tem todas as suas dúvidas, desejos e inseguranças esmiuçadas por Tolstói, mas a atenção que o escritor também dedica a outros personagens e temas, como o fazendeiro Liêvin e seus questionamentos religiosos e existenciais, fazem  do romance um verdadeiro estudo psicológico e social da sociedade russa daquele período cujas conclusões soam incrivelmente atuais. Essa atemporalidade, aliás, pode ser comprovada através das várias adaptações que o texto recebeu ao longo dos anos para TV e cinema (o IMDB lista pelo menos 10 títulos). É da mais recente dessas adaptações que falo a partir de agora e, para o poder fazer com todos os detalhes que desejo, não evitarei o uso de SPOILERS, ok?

Anna Karenina - CenaOblonski (Matthew Macfadyen) traiu a esposa, Dolly (Kelly Macdonald), e, para evitar o divórcio, solicitou que sua irmã, Ana Karênina (Keira Knightley), viesse até sua casa acalmar a mulher. Ana viaja, resolve o problema e então é convidada para o baile de Kitty (Alicia Vikander), irmã de Dolly. Durante a festa, ela, que é casada com o funcionário público Alieksiei Alieksándrovitch (Jude Law), desperta os sentimentos do Conde Vronski (Aaron Taylor-Johnson), pretendente de Kitty que, por sua vez, acabara de dar um fora no sincero e rústico Liêvin (Domhnall Glesson)….

… entendeu? Não?!? Calma lá, o roteiro não é tão complicado assim, o difícil é resumi-lo em tão poucas linhas. Basicamente, Anna Karenina (aqui utilizo o título oficial do IMDB, mas manterei os nomes dos personagens tal qual eles estão no livro) gira em torno da traição de Ana, que abandona o marido, Alieksiei, para viver com o bonitão Conde Vronski. Paralelamente, acompanhamos o personagem Liêvin e suas divagações enquanto ele tenta casar-se com Kitty.

Anna Karenina - Cena 3Responsável pela tarefa inglória de transformar o longo e detalhado texto do Tolstói em um filme de 2 horas, o diretor Joe Wright (Hanna) optou por simplificar ao máximo os eventos chaves da história e dar-lhes vida através de uma experiência visual criativa e arrebatadora. Assim sendo, as várias paisagens rurais e urbanas descritas por Tolstói são substituídas por cenários de estúdio que vão sendo montados a medida que os personagens movimentam-se através deles. Ainda que, inicialmente, eu tenha torcido o nariz para esse artifício (que é aliado a temas musicais majoritariamente felizes, descaracterizando o clima ‘sério’ da trama), acabei me rendendo a beleza que a técnica imprime a história. O visual como um todo, aliás, é impecável, tanto que Anna Karenina levou o Oscar de Melhor Figurino de 2013 e concorreu nas categorias de Melhor Design de Produção e Melhor Fotografia.

Anna Karenina - Cena 5Wright enche nossos olhos com bailes grandiosos e, suponho, consegue entreter quem não conhece o livro, mas, como fiz a leitura do mesmo, não posso evitar comparar os dois produtos e relatar o abismo que há entre eles no quesito roteiro. Sim, eu sei que adaptações, necessariamente, sacrificam passagens, personagens e a profundidade de certos sentimentos. Se o Tolstói gasta diversos capítulos de sua obra construindo a personalidade complexa e contraditória de Ana Karênina, uma mulher que vai do auto controle/discurso moralista para a completa paranoia ao longo da trama, não poderíamos esperar que o diretor conseguisse, em pouco mais de 2 horas, reproduzir todas aquelas digressões e mudanças paulatinas de comportamento tal qual acontece no livro. Isso é compreensível, mas, considerando que esse definhamento psicológico e as contradições do discurso (o que Ana fala sobre traição para Dolly no início soando extremamente hipócrita frente aos ataques de ciúmes dela no fim), mais do que os eventos contidos na história, são o que REALMENTE importam aqui, a opção do diretor e dos roteiristas por mostrar as grandes cenas da história, como a rejeição pública que Ana sofre na ópera e o fim trágico que ela encontra na estação de trem, é infeliz e insuficiente.

Anna Karenina - Cena 4Outro erro, esse talvez fruto de preciosismo decorrente das imagens mentais que o livro me forneceu, é a escolha dos 3 atores principais. Ana é descrita por Tolstói como um furacão, uma mulher extremamente sedutora que em nada lembra a frágil Keira Knightley. A atriz, aliás, está completamente equivocada no papel, dando ao descontrole emocional de Ana os mesmos traços de histeria que ela deu para sua personagem no Um Método Perigoso. Aaron Taylor-Johnson, o Kick Ass do filme de mesmo nome, também não é o galante e viril Vronski, o homem cujo charme foi capaz de fazer com que Ana abandonasse o marido, o filho e enfrentasse toda a conservadora sociedade russa para viver um romance. Por fim, Domhnall Glesson também não convence como Liêvin. O meu personagem favorito do livro, um sujeito indeciso que é atormentado por uma infinidade de questões existenciais, aqui é mostrado apenas como um bobão.

Mesmo ciente de que as expectativas e impressões construídas ao longo de 7 meses não poderiam serem saciadas em uma sessão de 2horas, devo condenar essa adaptação devido a superficialidade que ela toca nos temas ligados a alma humana que o Tolstói explora tão bem em sua obra. A Ana Karenina, personagem do escritor, é uma mulher transgressora que arrisca tudo para resgatar a emoção de viver. Ela surta ao longo do processo e comete alguns atos reprováveis, mas ainda assim somos capazes de simpatizar com ela. Já a Ana Karenina mostrada no filme do Wright é apenas uma aristocratazinha mimada e detestável da qual só conseguimos sentir repulsa. Por mais trabalhosa que seja a leitura, os sabores do livro, quando comparados aos desse filme, provam-se infinitamente superiores.

Anna Karenina - Cena 2

O Amante da Rainha (2012)

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O Amante da RainhaSe, em uma conversa de bar, tu disser que o poder corrompe, certamente receberás sinais automáticos de aprovação. “Quer conhecer uma pessoa? Dê poder a ela!”, emendará alguém na sequência com a convicção de que falou algo inteligente e inquestionável. Pergunto: Estaria, portanto, o Estado e outras formas de organizações que concentram o poder fadados a corrupção? Levando em conta o conhecimento popular citado no início e acrescentando que “não existe político correto”, máxima generalizadora mas difícil de contestar atualmente, a resposta seria um sonoro e superficial SIM. Pergunt0 novamente: Se ser corrupto é, considerando o raciocínio desenvolvido, algo que está atrelado a natureza humana, porque continuamos nos revoltando quando lemos ou ouvimos alguma notícia sobre corrupção? Se é normal, porque ficamos indignados? Hipocrisia, moralismo, falta de roupa para lavar? O Amante da Rainha, produção conjunta entre Dinamarca, Suécia e República Checa que concorre ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, utiliza uma história de amor e traição para analisar a complexa questão que envolve o homem e o poder e fornece algumas respostas interessantes para as perguntas feitas acima.

Século XVIII, Dinamarca. Carolina Mathilde (Alicia Vikander) é enviada para a corte do rei Christian VII (Mikkel Boe Folsgaard) para tornar-se sua esposa. Apesar do monarca dinamarquês dar provas claras de que foi tomado pela loucura, o casamento é consumado e o casal gera um filho. Como a saúde mental do rei deteriora-se dia após dia, o médico alemão Johann Friedrich Struensee (Mads Mikkelsen) é contratado para cuidar dele. Struensee, um entusiasta das idéias iluministas que surgem no continente europeu como uma ameaça para a igreja e a monarquia, acaba despertando o interesse amoroso da rainha e transforma-se no principal conselheiro político do rei.

Safadinha...

Safadinha…

Pelo título já dá para sacar que o médico malandrão “fatura” a rainha, né? Dirigido pelo dinamarquês Nikolaj Arcel, O Amante da Rainha é muito mais do que um simples triângulo amoroso de época. Li no textinho da Veja que trata-se de um filme onde vemos como um caso de amor venceu o Iluminismo na Dinamarca. Sinceramente, está é uma definição extremamente pobre. Sim, o romance entre Struensee e Mathilde prejudica temporariamente algumas reformas políticas no país baseadas na corrente filosófica francesa, mas é principalmente o desenvolvimento psicológico e comportamental do médico que merece atenção na trama.

Filho de um pai conservador, Struensee foi seduzido pelas idéias de Locke e Voltaire e passou não apenas a simpatizar com as idéias iluministas como a utilizá-las em seus textos onde ele criticava a monarquia e o abuso contra os camponeses. O médico alemão era, por assim dizer, um intelectual, uma dessas pessoas que conhecem todos os problemas do mundo e que, diferente daqueles pessoas que estão no poder, lutaria para resolvê-los se tivesse uma chance. Compartilhando do interesse de Christian por teatro e Shakespeare, Struensee é contratado para ser o médico pessoal do rei e recebe a chance que tanto esperava quando convence o novo amigo a dissolver o parlamento que o manipulava. E daí que, para conseguir isso, ele também manipula o rei e, pior, transa com a mulher dele? Os fins justificam os meios e uma nova época repleta de justiça e igualdade social nascerá para todos graças a um homem do iluminismo, certo? O que você acha, Consuelo?

Mesmo com as melhores intenções, Struensee acaba transformando-se naquilo que ele combatia

Mesmo com as melhores intenções, Struensee acaba transformando-se naquilo que ele combatia

Struensee, assim como os integrantes das rodas de bar, tinha todas as respostas. Acredito verdadeiramente que ele era um cara bem intencionado e que ele gostaria de utilizar o poder para ajudar os outros. Quem, aliás, não gostaria de tornar o mundo um lugar melhor e ser publicamente reconhecido por isso, entrando para a história como um governante honrado? As leis e decretos que ele esforça-se inicialmente para aprovar, coisas que vão desde acabar com a censura até redistribuir renda e terras, são louváveis, mas a necessidade de governar para todos, inclusive para aqueles que não concordavam com suas medidas, transforma-se em um desafio que Struensee encara utilizando as mesmas técnicas e jogos políticos que aqueles que ele criticava anteriormente utilizava: censura, prisões, deportações, aumento de impostos, etc. Assistimos a ascensão e queda do personagem enquanto olhamos para nós mesmos e percebemos que nossos pensamentos sobre política são muito mais rasos do que imaginamos. A complexidade e as dificuldades inerentes a governabilidade certamente não autorizam ou desculpam a corrupção, mas histórias como a mostrada no filme e, olhando mais próximo, a trajetória recente do PT, nos fazem questionar se é possível utilizar o poder sem “sujar as mãos”, tema que esse ano também pode ser visto nas linhas do Lincoln e que merece discussões muito mais ricas e pragmáticas do que aquelas que fazemos nos bares da vida.

O Amante da Rainha conta ainda com um visual soberbo, músicas idem e uma atuação doentia e divertida do Foolsgard para o rei Christian VII (atenção na cena onde ele imita o papagaio). Uma ou outra cena de nudez e o drama de Mathilde para tentar salvar sua imagem perante os filhos completam o pacote. Particularmente, adorei a provocação política e intelectual do roteiro e, apesar de saber que o filme não tem absolutamente nenhuma chance no Oscar, recomendo muito a apreciação.

"O quão triste é saber que tu não viverá para colher os frutos de sua idéias e trabalhos?" Ai!

“O quão triste é saber que tu não viverá para colher os frutos de sua idéias e trabalhos?” Ai!