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Estrelas Além do Tempo (2016)

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estrelas-alem-do-tempoEntre as década de 50 e 70, Estados Unidos e União Soviética travaram a chamada “corrida espacial”, disputa não declarada na qual as duas nações buscavam o pioneirismo no envio de tripulação e equipamentos para fora do planeta. Como a URSS saiu na frente (lançou o satélite Sputnik I, em 1957, e o soviético Iuri Gagarin foi o primeiro homem a viajar pelo espaço, em 1961), a pressão sobre a NASA para igualar e superar os feitos de seus concorrentes aumentou bastante.

Após lançar o seu próprio satélite (Explorer I, em 1958) e também colocar um homem no espaço (Alan Shepard, em 1961), os EUA, então sob o comando do presidente John F. Kennedy, lançaram um ambicioso plano de enviar astronautas à lua. A história nos conta que esse objetivo foi alcançado em 1969, quando o astronauta Neil Armstrong e sua equipe pousaram a missão Apollo 11 em solo lunar, ocasião que marcou a virada americana na corrida espacial e em que Armstrong proferiu a famosa frase “Este é um pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade”.

Iuri Gagarin, Alan Shepard, Kennedy e Armstrong. A história da corrida espacial, tal qual está registrada, foi protagonizada por homens. Em seus respectivos países, eles foram e são considerados heróis nacionais e é justo que assim o seja, visto os riscos que eles assumiram e a coragem que guiou suas missões, mas eles não chegaram tão longe sozinhos. Também é justo, portanto, que sejam prestadas homenagens àqueles profissionais cujos inestimáveis conhecimentos científicos permitiram que o espaço fosse desbravado, figuras ocultas que trabalharam nos bastidores para que outras pessoas pudessem receber os holofotes. É esse o papel de Estrelas Além do Tempo: democratizar os méritos de um dos episódios mais importantes da história da humanidade e mostrar que a glória daquele momento foi construída por várias mãos, inclusive mãos femininas e negras.

estrelas-alem-do-tempo-cena-3Desde pequena, Katherine G. Johnson (Taraji P. Henson) impressionava os pais e os professores por sua capacidade de compreender e executar cálculos avançados. Seu talento permitiu-lhe formar-se em matemática aos 18 anos de idade e, aos 25, Katherine inscreveu-se e foi selecionada para um programa voltado para mulheres negras da NASA.

Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) comandou o grupo de matemáticas no qual Katherine trabalhou. Dedicada e com aptidão para as tecnologias que estavam sendo desenvolvidas no período, como a computação, Dorothy reivindicou para si o título de supervisora num período onde o racismo ainda estava enraizado nas instituições norte americanas.

Mary Jackson (Janelle Monáe) também trabalhou na NASA como matemática. Interessada na construção de aeronaves experimentais e na análise de túneis de vento, Mary decidiu seguir carreira como engenheira, o que exigiu uma batalha judicial visto que a faculdade do estado não aceitava “alunos de cor”.

Em comum, essas 3 mulheres tiveram a participação no Projeto Mercúrio, programa espacial responsável por colocar o astronauta John Gleen (Glen Powell) em órbita na Terra, em 1962, e que estabeleceu as bases para a conquista da lua no final daquela década. Também em comum, elas tiveram a luta para terem seus trabalhos reconhecidos em um ambiente dominado pelos homens e numa sociedade que media o valor das pessoas com base na cor de suas peles.

estrelas-alem-do-tempo-cenaEstrelas Além do Tempo, filme do diretor Theodore Melfi baseado em um livro da escritora Margot Lee Shetterly, é um desses longas que apelam para o senso de justiça do espectador para emocionar. Os EUA da década de 60 visavam o futuro e ambicionavam conquistar o espaço, mas aqui, em terra firme, eles ainda amargavam leis retrógradas que segregavam negros e brancos. Mesmo trabalhando para a NASA, Katherine, Dorothy e Mary ficam receosas em serem confundidas com bandidos quando o seu carro quebra na beira da estrada e uma viatura da polícia aproxima-se. Mesmo sendo uma das melhores da sua equipe, Katherine precisa andar quase 2km para usar um banheiro para “pessoas de cor” e não pode usar a cafeteira dos homens e mulheres brancas de seu trabalho. Mesmo realizando trabalho de supervisora, Dorothy não é conhecida como tal e não recebe o mesmo que outras mulheres que ocupam o cargo. Mesmo tendo todas as qualidades e qualificações para tornar-se engenheira, Mary precisa convencer a sociedade que ela tem o mesmo direito de cursar uma faculdade que os brancos. O filme aponta sistematicamente o quão injustas são essas situações e reserva um final feliz para cada uma delas, o que enche a gente de alegria e confiança no poder da perseverança e naquilo que é certo.

estrelas-alem-do-tempo-cena-4Uma das grandezas do roteiro é a multiplicidade de perspectivas abordadas sobre a questão racial. Há os brancos racistas que valem-se da legalidade da segregação para destilarem ódio e inveja contra as personagens (Jim Parsons e Kirsten Dunst), mas também há o branco liberal e progressista (Kevin Costner) e os negros que tanto não reconhecem o seu próprio valor (Mahershala Ali) quanto adotam discursos conformistas e rancorosos (Aldis Hodge). Dessa forma, o filme expõe a ferida do racismo e fala tudo o que precisa falar, mas o faz sem incitar novos conflitos raciais ou de gênero. O roteiro convida à reflexão, e cabe a cada um olhar para a tela e identificar em si mesmo o que precisa ser melhorado.

Ao contrário dos EUA, que buscavam a supremacia na corrida espacial, as protagonistas de Estrelas Além do Tempo não desejam serem superiores a ninguém e nem tampouco obterem vantagens. Elas lutaram por igualdade, e é muito bom saber que elas conseguiram vencer o preconceito e o machismo valendo-se apenas do esforço e do talento (e, no caso da Katherine, de uma gritaria frenética naquele que talvez seja o maior ‘cala a boca’ da história recente do cinema). É bom também que Hollywood tenha atentado-se para o poder de inspiração da trajetória dessas mulheres e tenha dedicado um filme a elas, ajudando assim a tornar seus nomes mais conhecidos para quem (\o) associava viagem à lua apenas ao Neil Armstrong. O filme concorre a 3 Oscars (Melhor Filme, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Atriz Coadjuvante) e, dentre os selecionados, talvez seja o de maior apelo popular.

Hidden Figures Day 42

Cercas (2016)

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cercasEu já fui ao cinema em outro país e em outros estados, mas eu nunca havia ido ao cinema dentro da minha própria casa. Ontem eu fiz isso e foi muito, muito legal.

Comprei um projetor portátil para utilizar nas aulas que darei esse ano. Ao longo de 2016, não foram poucas as vezes que senti falta de mostrar imagens e vídeos para ilustrar o que eu estava falando, mas a escola onde eu trabalho possui apenas uma sala de vídeo e ela está sempre ocupada pelos outros professores. Assim sendo, resolvi investir uma grana para facilitar a minha vida e, de quebra, tornar temas como Revolução Francesa e Primeira Guerra Mundial mais atrativos para os alunos.

Como eu precisava testar o aparelho, coloquei-o sobre uma mesa no fundo da minha casa, mirei a projeção numa parede encardida, configurei daqui, regulei dali e TCHANAM! montei o meu próprio cinema! Tá certo que a intenção não era bem essa e que a projeção não fica maior do que a tela de uma TV de 42″ (o som também é meio capenga), mas não tem crianças gritando, não tem adultos mexendo no celular e eu consigo ver estrelas quando olho para o alto. Estrelas, caras!

O filme que ficará marcado para sempre na minha memória como o primeiro de muitos que verei no conforto da minha casa é o Cercas. Dirigido e protagonizado pelo Denzel Washington, o longa é baseado em uma peça teatral do escritor August Wilson e conta a conturbada história de uma família afro-americana que atravessou a década de 50 lutando para sobreviver à pobreza e ao preconceito racial mas, sobretudo, lutando para permanecer unida.

cercas-cena-3A primeira impressão que tive de Troy (Denzel) foi muito boa. Falastrão e bem humorado, o cara passa a semana toda dando duro como lixeiro e na sexta, e somente na sexta, ele tira um tempo para tomar um trago com seu amigo Jim Bono (Stephen Henderson). Troy é casado com Rose (Viola Davis), mulher que ele paparica constantemente com elogios e promessas de noites fogosas, cuida de um irmão com problemas psicológicos (Mykelti Williamson) e cria dois filhos que não demonstram interesse em trabalhar, Cory (Jovan Adepo) e Lyons (Russell Hornsby). Que homem, não?

Completando o perfil “cara legal”, Troy mostra-se disposto a enfrentar o status quo de sua época e questiona seu patrão sobre a distribuição das tarefas na empresa. Segundo ele, não é justo que somente os brancos possam dirigir o caminhão do lixo enquanto os negros ficam responsáveis pela coleta. Quando surge um burburinho que a reclamação pode custar-lhe o emprego, Troy vale-se de sua característica mais marcante, a eloquência, e faz um belo e corajoso discurso de enfrentamento.

cercas-cena-4Nesse momento da trama, já rendido pelo caráter do personagem e por sua postura leve diante dos problemas, eu era capaz de jurar que Cercas caminharia para alguma injustiça trabalhista e/ou injúria racial que Troy enfrentaria em uma história edificante. Não é nada disso que acontece. Na segunda metade do filme, vemos aquele herói da vida real ser desconstruído no seio de sua intimidade familiar até restar apenas mais um ser humano qualquer, com suas qualidades e defeitos.

Troy, que é apaixonado por baseball e foi ele mesmo um excelente rebatedor, não quer que Cory, seu filho mais novo, tente uma carreira no esporte. Segundo ele, por mais que os negros sejam melhores que os brancos, a questão racial sempre falará mais forte no momento do treinador escolher os titulares. Considerando o contexto da história (Estados Unidos, década de 50), esse raciocínio não está descolado da realidade e pode até ser visto como um gesto protecionista de pai para filho, mas ao mesmo tempo essa resignação soa hipócrita quando vemos que o próprio personagem não priva-se de questionar a ordem das coisas em seu serviço.

cercas-cenaMais uma vez, o discurso do “faça o que eu digo, não o que eu faço” incomoda na relação de Troy com Lyons, filho mais velho que ele teve em outro casamento. Lyons, que trabalha na noite como músico e ganha pouco, vive pedindo dinheiro emprestado. Troy dá um um sabão épico no filho por isso, dizendo que ele deveria abandonar aquele ambiente de vagabundos e arrumar um serviço de verdade, mas é justamente para um bar que Troy vai toda sexta feira tomar uma com Jim antes de ir para casa. Estranho, não? É nesse bar, aliás, que Troy começa a enrolar-se de verdade.

Logo no primeiro diálogo do filme, Jim diz que viu Troy observando uma garota. Troy desconversa e a gente nem dá muito bola para essa conversa, que é rápida e acontece em meio aos créditos iniciais. Troy, aquele homenzarrão apaixonado e trabalhador, não trocaria Rose por um rabo de saia qualquer, não é mesmo? A escapada do personagem ganha proporções inimagináveis na segunda metade de Cercas e dá a chance da atriz Viola Davis brilhar em uma cena poderosa de desabafo que transborda sentimentos tão díspares e ao mesmo tempo tão inseparáveis como amor e ódio.

cercas-cena-2Cercas, conforme o título sugere (e que é explicitado por Rose em um diálogo), fala de pessoas que constroem proteções metafóricas ao redor de si para lidar com os problemas da vida. O ponto aqui é que essas proteções podem tanto resguardar o que está dentro quanto manter longe quem está do lado de fora. A “cerca” de Troy é o discurso de austeridade, a postura de chefe de família trabalhador que ele usa para esconder os próprios erros e fraquezas enquanto cobra posturas dos filhos, da esposa e do amigo que ele mesmo não pratica. Cercas critica a rigidez de caráter e os discursos hipócritas, mas o final reserva um bálsamo, quase uma solução do tipo deus ex machina, para que a gente perceba a beleza das contradições que habitam o coração humano. Colocando de outra forma, Troy não é um herói, mas isso não faz dele necessariamente um filho da puta.

Pelas atuações, Denzel Washington e Viola Davis concorrem, respectivamente, ao Globo de Ouro de Melhor Ator – Drama e Melhor Atriz Coadjuvante. Não consegui ver todos os indicados (e nem conseguirei – a cerimônia de premiação já é amanhã), mas torcerei pela dupla, principalmente pelo Denzel, que fala, fala, fala e a gente não consegue cansar de escutar. O texto é bom e divertido, mas o domínio dele sobre o personagem (que o próprio Denzel já havia interpretado no teatro mais de 100 vezes) é tipo de coisa que merece um prêmio.

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What Happened, Miss Simone? (2015)

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What Happened, Miss SimoneAcabou! Acabou! Acabou! A não ser que O Filho de Saul ou O Abraço da Serpente vazem de hoje para amanhã (e eu duvido muito que isso aconteça), esse What Happened, Miss Simone?, produção original da Netflix, será o último indicado ao Oscar de 2016 que resenharei. Como quero utilizar esse texto para fazer alguns comentários sobre o trabalho que realizei, vou começar analisando o documentário e, no final, reservarei um espaço para finalizar a cobertura do Oscar. Fiquem a vontade para lerem apenas a parte do texto que lhes interessarem 🙂

No começo, quando coloquei What Happened, Miss Simone? pra rodar no Netflix, não liguei nem o nome e nem a voz à pessoa. Assim sendo, deixei que a diretora Liz Garbus me apresentasse uma cantora que começou a carreira ainda criança quando foi descoberta por uma professora de piano em uma igreja. Eunice Waymon, que mais tarde mudaria o nome para Nina Simone, ambicionava ser a primeira pianista clássica negra dos EUA e para isso ela dedicou os primeiros anos de sua vida estudando teoria musical e compositores como Bach. Nina alcançou o sucesso e transformou-se em uma das vozes mais marcantes de sua geração, mas isso não garantiu-lhe paz de espírito.

Para responder a pergunta que faz no título do documentário (O que aconteceu, Srta. Simone?), a diretora utiliza imagens de shows e de entrevistas gravadas por Nina (ela faleceu em 2003), bem como dá voz a pessoas que conviveram diretamente com ela, como sua filha e Andrew Stroud, seu esposo e empresário. Notei que, apesar de citar o diagnóstico de bipolaridade que teriam atribuído à cantora e mostrar que ela não mediu consequências na hora de participar da luta pelo fim da segregação racial durante a década de 60, Liz Garbus é excessivamente respeitosa ao apontar os motivos que comprometaram a carreira de Nina. O comportamento muitas vezes intransigente nos palcos e o discurso violento que ela parece ter adotado enquanto manifestava-se pelos direitos civis, ao meu ver, não são suficientemente problematizados pela diretora, que prefere concentrar-se mais nos aspectos da vida privada da cantora para buscar as respostas que ela procurava.

What Happened Miss Simone - Cena 2What Happened, Miss Simone?, conta-nos, por exemplo, que Nina desenvolveu uma personalidade mais reservada por ter crescido separada das outras crianças de sua idade. Enquanto todos corriam e brincavam, ela estava sentada e concentrada nos estudos musicais. Já na adolescência, Nina depara-se com a face preconceituosa da sociedade americana quando é rejeita de uma escola de música devido à cor de sua pele. Quando adulta, ela precisa conviver diariamente com a violência e a ganância do marido, que espanca-a constantemente e age como um parasita sobre a carreira e os lucros dela.

Tudo isso, a diretora Liz Garbus nos diz, contribuiu para que a cantora fosse acumulando uma série de tristezas e frustrações que tanto explodiram nas mensagens anti-sistema que ela converteu em música enquanto lutou ao lado de nomes como Martin Luther King e Malcolm X quanto foi preponderante para que, no auge do sucesso, ela abandonasse tudo e todos e se mudasse para a África. Não acho, porém, que Nina tenha sido uma vítima das cruéis circunstâncias que a vida lhe impôs: o que vi foi uma mulher forte que, quando atingiu o topo, não quis mais curvar-se nem para a sociedade e nem para a família. Durante esse processo, ela cometeu alguns erros de julgamento (os que eu disse que a diretora poderia ter explorado mais) e acabou pagando um preço altíssimo por isso (perder público, chegar a ser confundida com uma moradora de rua), mas ela parece ter chegado no final da vida consciente de que os altos e baixos enfrentados levaram-na até onde ela queria chegar.

What Happened Miss Simone - Cena 4Durante o filme, a diretora mostra algumas das canções mais conhecidas de Nina, como Don’t Let Me Be Misunderstood e My Babe Just Cares For Me, mas foi justamente por uma música que não foi executada que eu acabei lembrando que eu já conhecia a cantora. Como assim? A medida fui ouvindo aqueles movimentos rápidos no piano e ficando encantado com a voz marcante de Nina, recordei-me que a Feeling Good, música que o Muse resgatou no álbum Origin of Symmetry, é de autoria dela. Ao contrário do que eu disse na resenha do Amy, estou percebendo que gosto bastante de jazz, pois foi bom conhecer a história da Nina, mas foi melhor ainda ouvi-la cantar. A execução no final da música Stars, aliás, é o tipo de momento que merece ser chamado de “embasbacante”: tal qual alguém que resume a própria vida, Nina expõe a alma no palco enquanto fala de estrelas que vem e vão. É de arrepiar, de verdade.

What Happened Miss Simone - CenaBem, a resenha de What Happened, Miss Simone? acaba aqui. Sobre os últimos 3 meses e todo o trabalho que fiz para cobrir o Oscar, devo dizer que estou bastante feliz comigo mesmo. Lá em dezembro, quando iniciei o processo com o texto do Beasts of no Nation, eu estava bastante cansado e desanimado com o blog: era final de ano letivo na escola onde eu dou aula e duvidei de verdade que eu fosse conseguir tempo para ver todos os indicados. Foi então que filmes como O Despertar da Força e Os Oito Odiados foram estreando e me fazendo lembrar do porque o cinema ter convertido-se na grande paixão da minha vida: tive ótimas experiências cinematográficas na passagem de 2015 para 2016 e isso fez com que eu decidisse esforçar-me para realizar a minha melhor cobertura do Oscar até então. Não foi fácil. Esse ano, a Academia escolheu muitos títulos bons, como O Quarto de Jack, mas também selecionou títulos chatos e difíceis como A Grande Aposta. Se não tive as mesmas dificuldades que tive o ano passado para ver os indicados a Melhor Filme (só consegui ver o Selma, por exemplo, faltando 3 dias para a premiação) e a Melhor Animação (vi todos dessa vez, em 2015 faltou o A Canção do Oceano), não posso dizer o mesmo dos concorrentes a Melhor Filme Estrangeiro: sempre costuma faltar um ou outro, mas dessa vez faltaram dois e um deles, O Filho de Saul, é o franco favorito a levar a estatueta. Todo caso, o resultado é extremamente positivo: com esse documentário (e faço questão de pontuar que é a primeira vez que resenhei dois indicados nessa categoria), somam-se 28 textos de filmes que amanhã concorrerão entre si pelo prêmio máximo da indústria cinematográfica americana. Eu me propus a fazer algo e consegui: estou feliz e agora vou abrir uma cerveja para comemorar essa vitória enquanto revejo O Regresso, filme pelo qual torcerei amanhã com todas as minhas forças. Chegou a sua hora, Leo!

What Happened Miss Simone - Cena 3

Foxy Brown (1974)

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Foxy BrownNo Jackie Brown, aquele filme “menos brilhante” da filmografia do Tarantino, a personagem título tem o seguinte diálogo com Max Cherry, o detetive interpretado pelo ator Robert Foster:

Max Cherry: Eu aposto que você está exatamente como você era aos 29 anos.
Jackie Brown: Bem, minha bunda não é mais a mesma.
Max Cherry: Maior?
Jackie Brown: É.
Max Cherry: Não há nada errado nisso!

Sábias palavras, Tarantino, sábias palavras. Pam Grier, a atriz que dá vida a Jackie, foi um dos principais nomes do período clássico do cinema black exploitation, gênero conhecido por explorar a imagem do negro americano relacionada a violência, sexo e drogas. Desde que vi o filme citado, grande admirador da beleza das mulheres negras que sou, fiquei curioso para conferir como a voluptuosa Pam Grier (48 anos quando gravou Jackie Brown) era aos “29 anos” quando atuou no auge da forma nas produções que a consagraram. Pesquisei a filmografia da moça e, dentre tantos longas com cartazes mostrando decotes generosos, escolhi esse Foxy Brown. Falo-vos agora como um homem satisfeito e admirado com o que viu.

Foxy Brown - Cena 2E o que vi, tão logo o filme começou, foi uma dessas maluquices psicodélicas setentistas que meio que dizem para a gente “prepare-se, nada fará sentido aqui!” rs. Ao som de uma música dançante, a cocotinha Pam Grier surge com um cabelão black power chacoalhando seus impressionantes atributos. Ela sorri, acena e troca de roupa. O fundo da tela pisca, brilha e muda de cor freneticamente. Completamente hipnotizado, fui dominado por um único e persistente pensamento: “Peitos, peitos, peitos!”. Jack Hill, o diretor e roteirista dessa loucura, certamente sabia o efeito que essa introdução (ui!) causaria no espectador e, tão logo ela termina, ele já nos liberta desse transe demoníaco ao nos fornecer a visão daquilo sem o qual nada mais importaria a partir dali: Foxy Brown (Grier), acordada durante a madrugada pelo irmão que precisava de ajuda, levanta-se e… tira a blusa. Pausa, volta a cena. Pausa. Repete. Acende um cigarro. Pronto, agora já é possível prestar atenção nos outros personagens e na trama rs

Exageros e brincadeiras à parte (os peitos da atriz são gigantescos mesmo), nem só de sutiãs nº48 é feito Foxy Brown. Produto de sua época, ele evoca temas como o vigilantismo e a segregação racial para contar uma históra de vingança. Foxy vê tanto o namorado (Terry Carter) quanto o irmão (Antonio Fargas) terem suas vidas destruídas por uma organização criminosa comandada pela inescrupulosa Katherine (Kathryn Loder). Disfarçada de garota de programa, a personagem infiltra-se na organização e utiliza seu charme e intelgência para destruir o esquema criminoso.

Foxy Brown - CenaFoxy Brown transborda sexualidade em suas cenas de nudez e nos diálogos sugestivos e foi principalmente por isso que eu gostei dele, mas é necessário reconhecer também o valor das questões hitóricas do roteiro. Pensado como uma continuação para outro filme da Grier (o aclamado Coffy), ele acaba apresentando alguns furos, como a falta de informações sobre o passado da personagem principal contrastando com a construção sólida do background do namorado dela, mas o que chama a atenção aqui, principalmente para quem recorre aos filmes buscando também um olhar para as particularidades do passado, é o alinhamento da trama com as contradições sociais de seu tempo. Hill faz do irmão de Foxy um sujeito amargurado pela pobreza e pelo preconceito que discursa contra o excludente e segregador “sonho americano” mas, para tanto, não o transforma em uma vítima. O cara, aliás, é um filho da puta sem a menor noção de lealdade. A personagem principal, por sua vez, é uma mulher forte, independente e segura de si cuja comparação com sua antagonista, a branca, ciumenta e emocionalmente desequilibrada Katherine, chega a ser cruel. Mesmo assim, nota-se que o discurso, apesar de exaltar a cor negra, ainda considera-a como algo “exótico”. Um grupo de negros arma-se e começa a patrulhar o bairro, em uma clara alusão aos Panteras Negras? Há um personagem para dizer que isso é ilegal e constitui vigilantismo. Hill soa liberal, mas o passar dos anos permite-nos perceber que ele não conseguiu livrar-se completamente do conservadorismo que marcou a história americana naquele período quando escreveu seu filme.

Foxy Brown - Cena 3É possível e válido ler o filme através desse contexto político, mas nem de longe o foco dele é esse. Os black exploitatons são marcados sobretudo pela violência e aqui nós temos uma boa quantidade de cenas envolvendo o que há de melhor no amor entre os seres. Foxy atira no próprio irmão, queima um sujeito vivo, arranca as partes íntimas de um garanhão e atropela e tritura um bandido utilizando um monomotor. Quando não está na sua forma mais gráfica envolvendo litros de sangue falso, a pancadaria aparece num viés mais cômico. Dentre as cenas em que a Pam Grier aparece vestida, a que mais me agradou em Foxy Brown foi a invasão do bar lésbico em que ela dá uma surra em uma caminhoneira. A mulher diz que tem faixa preta em karatê e faz uma pose de combate engraçada só para cair em seguida toda estropiada no chão após ser atingida por um banco de madeira que Foxy arremessa contra ela. A confusão desenvolve-se então para uma briga de bar generalizada e um cenário majoritariamente masculino transforma-se no palco de um memorável festival de puxões de cabelo rs

Não foi à toa que o Tarantino resgatou a Pam Grier do ostracismo e transfomou-a na estrela de seu Jackie Brown. De fato, a atriz possuia um corpo capaz deixar qualquer um de boca aberta e encarnava com perfeição o tipo badass dos filmes de vingança, motivos mais do que suficientes para que ainda hoje ela mereça ser homenageada (entendam como quiserem rs) e para que valha a pena explorar sua filmografia.

Foxy Brown - Cena 4

Selma: Uma Luta Pela Igualdade (2014)

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SelmaA legenda saiu, a legenda saiu! Obrigado, Deus Todo Poderoso, a legenda finalmente saiu! Santa demora, inominável sofrimento! Perdoem-me o exagero, mas estou tentando assistir esse filme desde o começo de janeiro: não exibiram-no nos cinemas da cidade, o arquivo demorou para aparecer na internet e, quando apareceu, não veio com legenda. Eis então que surge uma legenda e…. olha o Google Tradutor aí, minha gente! Péssima, incompreensível. O resultado de todo esse perrengue é que só hoje, faltando 3 dias para o Oscar, tive a oportunidade de assistir e resenhar o último dos concorrentes a estatueta de Melhor Filme, tarefa que eu temi não poder executar antes da premiação, como tenho feitos nos últimos anos. Mas agora deixemos esse pesadelo de lado e falemos do que realmente importa aqui: o sonho do Martin Luther King Jr.

Em 1965, ano em que começa o recorte temporal trabalhado pela diretora Ava DuVernay, Luther King (David Oyelowo) já era O Luther King consagrado nas páginas da história americana da luta pelos direitos civis que conhecemos. A Marcha de Washington, oportunidade em que ele pronunciou o famoso discurso “I Have a Dream” aconteceu em 63 e, em 64, ele já havia sido agraciado com o Nobel da Paz. Uma das suas maiores batalhas, no entanto, ainda estava por vir: de posse de sua popularidade e prestígio internacional, o Doutor, como ele também era conhecido, passa a pressionar o então presidente Lyndon B. Johnson (Tom Wilkinson) para que ele garanta direitos de voto igualitários entre pretos e brancos. A campanha, que teria seu momento mais significativo na marcha de protesto realizada entre as cidades de Selma e Montgomery, Alabama, é alvo de ataques violentos tanto do estado quanto da parte conservadora da população civil.

Selma, portanto, não é exatamente aquela biografia tradicional em que acompanhamos a vida de uma personalidade, da infância até a maturidade, de modo que possamos compreender os motivos que levaram-na a ser tal qual ela é. DuVernay também envereda pouco por outro caminho comum dentro do gênero, que é mostrar o “homem por trás do mito”. A grande sacada da diretora, ao meu ver, é dividir a carga e as conquistas do Doutor com cada um que lutou ao lado dele e, por analogia, com aqueles que continuam disseminando sua mensagem de igualdade e tolerância até os dias de hoje, quase que em um tom de agradecimento e reconhecimento por seus esforços que raramente são lembrados.

Selma - Cena 2De frente para um espelho, King ensaia o discurso que fará na cerimônia de recebimento do Prêmio Nobel. “Aceito essa honra por aqueles que perdemos, cujas mortes pavimentaram nosso caminho e pelos 20 milhões de homens e mulheres negros motivados pela dignidade e o desdém pela desesperança”. São palavras bonitas e, no final das contas, ele está ali apenas ensaiando, mas, mesmo assim, ele interrompe a fala com um desaprovador “Não está certo”. A cena segue e vemos que, no final das contas, ele estava falando da própria gravata, mas é significativo que o filme comece assim, com o personagem negando parte de seu discurso. Naquele momento, não podemos dar o devido peso as palavras do personagem. Ele nos diz que pessoas morreram para que ele chegasse até ali e isso é indiscutivelmente triste mas, como essas pessoas não tem um rosto e/ou nome, tudo que podemos fazer é aplaudir mecanicamente o que foi dito, tal qual acontece na cena seguinte quando ele é ovacionado pela plateia ao palestrar na cerimônia de premiação. Não há dúvidas que King foi um homem extraordinário, um agente modificador das estruturas sociais de seu tempo, assim como não há dúvidas de que, se ele conseguiu fazer o que fez, foi porque várias pessoas sacrificaram tempo, suor e a própria vida para ajudá-lo. Selma cumpre essa importante tarefa de dar voz aos agentes secundários das revoluções e mostrar-nos o nosso próprio papel nesse processo.

Selma - CenaQualquer livro de história conta-nos que as reivindicações de King e dos movimentos sociais por direitos eleitorais acabaram sendo atendidas, mas, por mais que queiramos, nunca conseguiremos entender de fato o preço que foi pago pela mudança. O que DuVernay nos mostra, ainda que seja apenas uma dramatização dos conflitos do período, é uma pequena parcela da realidade, mas é uma parcela capaz de sensibilizar qualquer um para as questões de segregação racial que ela aborda devido a crueza com que cenas de espancamento e morte são registradas por sua câmera. Mulheres, dentre elas uma interpretada pela pop Oprah Winfrey, tem seus rostos esmurrados e seus corpos chutados. Homens são violentamente mortos e crianças tem suas vidas ceifadas por atentados. A cena da marcha na ponte, aquele tipo de material que deixa a gente enojado, é um verdadeiro massacre. Tudo isso, nos livros, costuma vir resumido em alguma frase eufemista (houveram conflitos entre o estado e a população), mas aqui nós vemos o rosto de cada uma dessas pessoas, gente que possui família e esperanças tal qual e você, e sabemos o que cada uma delas sacrificou individualmente para que King pudesse elevar sua voz acima do medo e da ignorância segregacionista. Cada corpo que cai provoca uma nova reflexão para o líder, cada perda adiciona um novo degrau na escada rumo a vitória: DuVernay prova que, mesmo que nem todos sejam lembrados, TODOS são fundamentais.

Voting Rights MarchSelma concorre a apenas 2 Oscars (Melhor Filme e Melhor Canção Original) e, independente dos resultados, a injustiça da Academia para com ele já está consumada. Li que a Paramount falhou em enviá-lo para que os avaliadores analisassem-no a tempo e isso é até compreensível, mas nada mudará o fato de que ele, a despeito de ser bem melhor do outros filmes que abordaram as causas negras nos últimos anos e foram reconhecidos pela Academia (Histórias Cruzadas, 12 Anos de Escravidão), foi praticamente ignorado pela mesma. Canção Original? Por que não Melhor Diretora e Melhor Ator? Decepcionante.

Selma - Cena 4

Em Nome da Honra (2006)

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Em Nome da HonraVivemos tempos de difícil compreensão, amigos. Assaltantes são amarrados em postes por supostos “cidadãos de bem”, mulheres são arrastadas no asfalto por viaturas policiais e cinegrafistas morrem enquanto tentam registrar os confrontos entre manifestantes e o Estado. Nesse tipo de cenário, somos constantemente convocados a tomarmos partido em discussões e assuntos que, muitas vezes, estão muito além da nossa compreensão e, devido a isso, não raramente sustentamos opiniões equivocadas simplesmente para não ficarmos “em cima do muro”.

Peguemos como exemplo as manifestações que aconteceram no país no período de Junho a Julho de 2013. Teoricamente, elas começaram por conta dos famigerados 20 centavos e foram articuladas pelo tal Movimento Passe Livre. A polícia tratou os manifestantes com truculência, fotos de jovens e pessoas da imprensa feridas circularam pela internet e a revolta contra preço das passagens de ônibus juntou-se a reivindicações maiores e mais abstratas que pediam mais saúde e educação e o fim da corrupção e da violência. Textos foram escritos, discursos foram proferidos e várias teorias sobre os acontecimentos foram discutidas mas, ainda que eu não me considere uma pessoa alienada e tenha procurado ler bastante sobre o tema na época, lembro do período com pesar devido a minha participação pífia nos eventos.

Em Nome da Honra - Cena 5Junto com cerca de outras 40.000 pessoas, fiquei parado em frente a prefeitura de Uberlândia, cantei o Hino Nacional e cheguei até mesmo a ajudar uns malucos lá a formar um cordão humano para impedir o trânsito em uma das principais avenidas da cidade. Eu queria participar, queria ver de perto aquele momento histórico do meu país e contribuir para o processo de mudança, mas a grande verdade é que eu não fazia a mínima idéia do que eu estava fazendo ali. O inimigo, se é que existia um, nunca teve um rosto para mim, mas, para não me sentir omisso, preferi ir para as ruas mesmo assim. Sinto-me triste todas as vezes que paro para pensar no ocorrido pois acredito que a maioria das pessoas que lá se encontravam estavam tão ou mais perdidas do que eu e que, de certa forma, essa ignorância influencia muito mais as nossas vidas do que nós gostaríamos de acreditar. O que podemos fazer à respeito?

  • Não nos envolvermos em assuntos sobre os quais nós não estejamos seguros sobre nossos conhecimentos?
  • Dedicar nosso tempo livre para compreendermos os complexos problemas que afetam a sociedade e, assim, poder agir conscientemente quando a opinião púbica for necessária?
  • Reconhecer que é difícil extrair alguma “verdade” desse tipo de situação e desistir, deixando as decisões sobre os rumos do país unicamente nas mãos dos políticos?
  • Agir por agir, emitindo opiniões do tipo “bandido bom é bandido morto” sem preocupar-se com as consequências a longo prazo desse tipo de pensamento?

Em Nome da Honra - Cena 2Sinceramente, eu não sei a resposta, mas quando vejo filmes como esse Em Nome da Honra, desconfio MUITO que o agir por agir é ainda pior do que a observação reflexiva que muitos classificam como omissão. Alheio as mazelas que o regime do Apartheid trazia para seus semelhantes, Patrick Chamusso (Derek Luke) trabalha em um refinaria de óleo e usa suas horas vagas para reunir crianças carentes e ensiná-las a jogar futebol. Não que Patrick seja completamente indiferente a segregação racial e aos maus tratos que os policiais brancos causam aos negros, mas ele optou pelo não enfrentamento e por concentrar-se no bem estar de sua família. A reviravolta acontece quando um atentado à bomba na fábrica onde ele trabalha coloca-o entre os principais suspeitos do investigador Nic Vos (Tim Robbins), um homem que também tem uma família para proteger e que fará isso a todo custo, mesmo que isso signifique pressionar os suspeitos até o limite para obter uma confissão.

Em Nome da Honra - Cena 3O diretor Phillip Noyce, de Salt e O Colecionador de Ossos, é feliz aqui em conduzir um roteiro que fala principalmente de como o Estado acaba criando os próprios problemas e inimigos que mais tarde ele enfrentará. Quando Patrick vê-se humilhado e sente que a segurança de sua família está ameaçada pelos avanços de Nic, ele, que até então mantinha-se distante das questões políticas e raciais de seu país, decide juntar-se aos “rebeldes” e ajudar a organizar os ataques contra o governo. O paralelo possível de ser feito com as manifestações comentadas no começo do texto é o de que, tal qual o personagem, o povo brasileiro, tido normalmente como pacato e conformado, também despertou para a necessidade de adotar medidas mais extremas quando alguém/algo ultrapassou os limites do bom senso e do aceitável. Em outras palavras, o descaso e a violência do Estado levaram, na ficção e na realidade, o povo a combatê-lo. Não foi isso, no entanto, que mais me chamou a atenção no relativamente chato Em Nome da Honra.

Em Nome da Honra - Cena 4Patrick podia até demonstrar um pouco de frieza por não fazer nada depois de ver outros negros serem metralhados na sua frente. Isso, no entanto, não faz dele uma pessoa ruim: é o instinto de auto preservação que faz com que ele cale-se diante desse tipo de humilhação para proteger a si mesmo e sua família e não há a menor dúvida de que uma pessoa que se dedica a cuidar de crianças carentes é sensível aos problemas do mundo. Não é porque ele não está disposto a pegar em armas contra o governo que devemos classificá-lo como omisso ou covarde. Quando, devido as complicações após o atentado, ele junta-se aos guerrilheiros, fica a impressão de que, mais do que transformar-se em um herói da luta pela igualdade racial, ele está agindo de forma desesperada e irracionalmente, visando simplesmente a destruição de seu inimigo tal qual Nic fizera com ele. Ainda que a maioria dos objetivos do personagem sejam alcançados, é difícil deixar de notar que, além de não agir conscientemente, ele sacrifica durante o processo algumas coisas que lhe eram extremamente caras. Eu não sei se, em condições semelhantes, eu estaria disposto a pagar o mesmo preço, se eu agiria por impulso e arriscaria a minha vida e a de meus familiares em nome de uma causa maior.

Em Nome da Honra é um desses dramas políticos em que o conteúdo supera a forma. Apesar de abordar um tema polêmico que nos inspira todas essas reflexões à respeito da responsabilidade de cada um sobre os rumos da sociedade, ele é moroso, carente de bons diálogos e de cenas memoráveis (aquele arrancada MENTIROSA do molequinho lá, seguida de gol, não conta). Procurei-o para assistir devido ao meu interesse pelo trabalho do Tim Robbins mas devo dizer que trata-se de uma das interpretações menos inspiradas que eu já vi do ator. Todo caso, fica a reflexão e a dica de mais um filme para os interessados no tema atualíssimo da segregação racial.

Em Nome da Honra - Cena

A Noite dos Mortos-Vivos (1968)

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A Noite dos Mortos-VivosDo penúltimo, achei por bem ir direto ao primeiro: comecei a explorar a filmografia do Romero com o Dário dos Mortos mas senti que o certo seria fazê-lo obedecendo a ordem cronológica, o que, entre outras coisas, me permitiria reconhecer as auto-referências e observar a evolução do trabalho diretor.

Com custos de produção declarados na ordem $114.000 e tendo rendido cerca de 100 vezes esse valor nas bilheterias, A Noite dos Mortos-Vivos tornou-se um dos filmes independentes mais rentáveis da história. No final da década de 60, com os órgãos de censura do cinema americano perdendo cada vez mais força, Romero escreveu e dirigiu um filme sombrio que trazia uma trama onde, ao contrário dos muitos filmes de terror da época, não parecia havar a preocupação em oferecer ao público um final feliz. O conflito racial e o medo da falência social que poderia ocorrer caso estourasse uma guerra nuclear foram usados pelo diretor como pontos de conflito dentro do roteiro, que deslocou a fonte do medo do campo sobrenatural para temas que eram discutidos diariamente pelos cidadãos, frescor que gerou o interesse do espectador e fez do filme uma espécie de divisor de águas dentro do gênero.

Após dirigir por um longo e sinuoso caminho através de estradas rurais, um casal de irmãos chega até o destino, um cemitério calmo (rs) e isolado. Uma visita em tom de obrigação é feita ao túmulo paterno, rosas e enfeites são deixados no local e, enquanto tenta assustar a irmã com histórias de fantasmas, o irmão é… atacado por um morto-vivo! Assim, sem mais nem menos, bem diante de seus incrédulos e assustados olhos, querido leitor. A tal irmã, que atende pelo nome de Barbra (Judith O’Drea), corre então desesperada através do campo, desviando de arbustos e de outros mortos-vivos, até encontrar uma casa abandonada que ela usa para esconder-se. Barbra, que entra em estado de choque, é auxiliada por Ben (Duane Jones), um negro que também chega até o local fugindo e que assume a responsabilidade de fortificar e defender a casa. Aos poucos, notícias sobre o levantar dos mortos começam a chegar pelo rádio e o governo orienta as pessoas a procurarem os postos de defesa por ele organizados, o que coloca Ben na situação delicada de precisar decidir entre ficar na casa ou arriscar-se a sair dela e enfrentar os mortos para chegar até o exército.

A Noite dos Mortos-Vivos - Cena 3

Quando chega no cemitério, o irmão de Barbra reclama que o mesmo ficava muito longe, que seria interessante mover os ossos do pai para um local mais próximo da casa deles. Não é engraçado que, em seguida, a situação inverta-se e ele seja assassinado justamente por um morto que aproxima-se e “vai até ele”? O roteiro de A Noite dos Mortos-Vivos traz ainda, além dessas e outras ironias (também acho engraçado que os humanos queiram tanto sair da casa enquanto tudo que os mortos querem é entrar rs), as mudanças de esteriótipos raciais que começavam a acontecer no cinema americano naquela época estimuladas pelas lutas do Martin Luther King e pelo reconhecimento do talento de atores como o Sidney Poitier. Ben, o único negro do filme, é também o personagem mais inteligente, calmo e preparado para lidar com aquela situação. Protagonizando o longa com suas enérgicas lições de moral, sua bravura e liderança, o personagem faz algo que seria impensável para um negro 10 anos antes, aplica um estrondoso tapa na cara de Barbra para chamá-la de volta a razão, cena, aliás, que evoca uma passagem parecida envolvendo o próprio Poitier no No Calor da Noite, longa de 1967 que ganharia o Oscar de Melhor Filme naquele ano.

A Noite dos Mortos-Vivos - Cena 2

Estranhamente, em nenhum momento do filme os mortos-vivos são chamados como tal, muito menos como zumbis. Nomeados pelos personagens como “aquelas coisas”, os mesmo ainda não tinham várias das característas que os tornariam conhecidos anos depois e ainda apresentam comportamentos que não lhes parecem naturais, como o medo do fogo. Nota-se também que, ao contrário do que virou uma constante no gênero de filmes de zumbis, aqui há uma tentativa de explicar a origem do problema, que é associada, apesar de em momento algum confirmada, a radiação trazida por um satélite que retornara de Vênus. Zumbis alienígenas!

O baixo orçamento de A Noite dos Mortos-Vivos pode ser percebido principalmente na maquiagem dos mortos, já que a maioria esmagadora deles, principalmente no início, não diferem-se em quase nada de um humano normal. O ser que ataca o irmão de Barbra no cemitério é um belo exemplo, a gente acaba demorando um pouco para perceber que ele é o que é. Optando por filmar em preto e branco, Romero supera esse e outros problemas do filme com o uso inteligente do jogo de luz e sombras e da construção de cenas memoráveis. Na casa há um porão, e no porão acontece um assassinato. Com uma colher de pedreiro. Acabei de rever a cena e, mesmo sabendo que usaram chocolate para simular o sangue, não dá para deixar de sentir um frio na barriga, vê-se o terror absoluto nos olhos da assassinada e o demônio nos da assassina. Não posso deixar também de comentar o “churrasco” que os zumbis apreciam em um determinado momento, um misto de humor negro e canibalismo que mexe com o estômago.

A Noite dos Mortos-Vivos - Cena

O melhor de A Noite dos Mortos-Vivos, porém, está reservado para o final. Há quem odeie conclusões desoladoras como aquela que pode ser vista no O Nevoeiro, mas eu as adoro tanto pela coragem de fazer algo diferente quanto porque, na vida, nem sempre tudo termina bem. À triste cena seguem-se os créditos finais, feitos com fotos do que aconteceu após o ataque dos mortos, e o filme termina sem oferecer nenhum tipo de esperança ao espectador, perspectiva sombria que daria o tom da maioria dos longas que seriam produzidos em território americano na década seguinte. A Noite dos Mortos-Vivos, apesar de naturalmente datado em alguns aspectos, ainda é um excelente filme tanto para inteirar-se da história do cinema quanto para divertir-se com mortes e sustos conduzidas por aquele que viria ser um dos mestres gênero.

A Noite dos Mortos-Vivos - Cena 4

Adivinhe Quem Vem Para Jantar (1967)

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Assim como todo homem que já “aprontou” bastante na vida, eu nutro um certo pavor pela idéia de ser pai de uma garotinha. A imagem de um “molecão” de 16, 17 anos vestindo roupas largas e usando boné sentado no sofá da minha casa e me chamando de “sogrão” é uma das representações mais reais que eu consigo conceber de pesadelo.  Faço agora uma pequena pausa para a sinopse para depois explicar o porque de eu ter percebido o quão hipócrita eu estou sendo com essa linha de raciocínio.

Em Adivinhe Quem Vem Para Jantar, a jovem Joey Drayton (Katharine Houghton) está retornando para casa após um período de férias. Junto com Joey, está o homem que ela pretende apresentar aos pais como namorado e futuro esposo, o médico John Prentice (Sidney Poitier). Os pais, Matt (Spencer Tracy) e Christina Drayton (Katharine Hepburn), julgam-se liberais e defensores dos direitos civis, mas qual será a reação deles quando, em plena década de 60, sua filha pedir permissão para casar-se com um negro?

Retornemos ao raciocínio inicial. Eu me considero uma pessoa íntegra: trabalho, estudo, sou honesto e procuro não prejudicar o próximo. Quando conheço alguém, espero que esses valores e não as minhas tatuagens, meus brincos ou meu costumeiro cabelo moicano sejam notados e/ou levados em consideração na hora de formarem opinião a meu respeito.

Prentice (Poitier) conhece o “sogrão” Matt Drayton (Tracy)

 O ponto aqui é: como eu posso me considerar um liberal (o que, em linhas gerais, eu me considero) e esperar que os outros também o sejam mas, na primeira opotunidade, me comportar EXATAMENTE da forma que eu considero condenável e julgar os outros pela aparência?

Dirigido e produzido por Stanley Kramer, nome importante da chamada Era de Ouro de Hollywood, Adivinhe Quem Vem Para Jantar é um filme feito durante o processo de reivindicação de direitos civis engrenada pela população negra dos EUA na década de 60 e, apesar de alguns equívocos esperados de análises feitas “no calor” do momento, provou-se uma obra atemporal nesse combate a hipocrisia. Último trabalho do veterano Spencer Tracy, que morreu poucas semanas depois do término das gravações, Matt Drayton é um americano liberal de classe média alta dono de um jornal que, historicamente, posicionou-se favoravelmente a igualdade entre negros e brancos. Tendo educado a filha com tais valores, Matt provavelmente nunca imaginou que ela fosse absorvê-los ao ponto de desafiar a sociedade da época apaixonando-se por um negro.

A família de Prentice também demonstra resistência a idéia do casamento inter-racial

Kramer combate a hipocrisia e o preconceito mas, em um dos tais “equívocos típicos”, exagera na retratação daqueles que defende estereotipando-os. Poitier, repetindo algo que passaria a ser uma caracterização constante em sua carreira, não é apenas um negro qualquer, humano, com defeitos e qualidades, que apaixonou-se por uma garota branca. Ele é (e precisa ser para que o público da época não fique tão chocado com a idéia que o filme vende) um super herói, um médico formado com honras em uma faculdade qualquer que salva a vida de crianças na África, um homem calmo e maduro que responde provocações com sorrisos e bom humor. Ponto que poderia criar alguma tensão, o fato do personagem já ter sido casado também é usado de forma a gerar empatia junto ao público: mulher e filha do médico, como é dito duas vezes no filme, morreram TRAGICAMENTE em um acidente. Vale lembrar que, tal análise é possível pelo distanciamento temporal e pela leitura do livro Cenas de Uma Revolução do Mark Harris, trabalho elucidativo sobre o filme/tema/período.

Com um argumento simples e gostoso de acompanhar, Adivinhe Quem Vem Para Jantar conta ainda com bons trabalhos de Poitier e de uma envelhecida Katharine Hepburn e termina com um longo e inspirado discurso do Spencer Tracy cuja carga emocional aumenta ainda mais quando visto como o canto do cisne de uma longa carreira. A forma como a questão racial é apresentada está datada, mas ainda sim é importante para entendermos a complexidade ideológica do período. Ah, quase me esqueci: filha minha não casa com pagodeiro, palmeirense ou “mano vidaloka” 🙂

Hepburn e Tracy (ele não parece o Carl Fredricksen do Up! – Altas Aventuras?)

Histórias Cruzadas (2011)

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Por mais que grande parte da cultura de massa americana atual seja produzida por nomes como Beyoncé, Jay-Z, Rihanna e afins e que a Casa Branca seja ocupada pelo Barack Obama, é notável que Hollywood ainda não cansou-se de levar as telas dramas sobre segregação racial que mancharam a história do país. Isso não é necessariamente ruim visto que, tal qual o Nazismo, é sempre bom relembrar o problema para que ele não caia no esquecimento e volte a assombrar futuras gerações inconscientes de seu passado. O ruim é que, devido a super exposição do tema, o argumento tornou-se repetitivo e os roteiros não tem conseguido escapar de fórmulas facilmente identificáveis e previsíveis para quem já viu um ou outro filme do tipo.

Originalmente intitulado The Help devido ao romance de mesmo nome da escritora Kathryn Stockett, Histórias Cruzadas retorna à década de 60 para contar a luta da jovem Skeeter (Emma Stone) para dar voz as empregadas domésticas negras de uma pequena cidade do Mississipi. O silêncio e o medo enfrentado pela repórter no início do trabalho é vencido quando uma dona de casa branca (Bryce Dallas Howard) despede sua empregada (Octavia Spencer) por não utilizar o banheiro da casa destinado aos negros. Com a ajuda da também negra Aibileen (Viola Davis), Skeeter começa a escrever o livro que promete revelar os abusos sofridos por aquelas mulheres que ajudaram a criar e educar as donas de casa que agora lhes oprimem.

O diretor Tate Taylor, que curiosamente atuou no Inverno da Alma, fez um filme correto e gostoso de assistir, Histórias Cruzadas garante algumas boas risadas com as atuações cheias de maneirismos das indicadas ao Oscar Viola Davis e Octavia Spencer e possibilita reflexão ao expor os problemas das personagens de forma emotiva. A indicação a Melhor Filme não chega a assustar visto o longa preencher a vaga de obra socialmente engajada da premiação do ano e também devido as atuações do elenco (a atriz Jessica Chastain também concorre a uma estatueta).  O que depõe contra esse trabalho é aquela sensação incômoda de “já vi esse filme antes”, o uso das tais “fórmulas” que eu comentei no início.

Nesse ponto, o leitor pode genuinamente questionar “quais fórmulas são essas?”. Os tais filmes sobre segregação racial americanos costumam girar ao redor da combinação dos seguintes elementos:

  • Década de 60
  • Marthin Luther King
  • Klu Klux Klan
  • Estados Sulistas
  • Personagens principais brancos “salvadores” contrapondo uma sociedade branca composta por pessoas imaturas, corruptas, maldosas e preconceituosas
  • Negros humildes, honestos e trabalhadores

Pesquisem “segregação racial” ali na ferramenta de busca (ou cliquem aqui) e vejam quantos filmes aparecem apenas nesse blog variando sensivelmente o tema mas fazendo uso de um ou mais desses elementos. Histórias Cruzadas é bom mas esquecível, um filme que não recompensa quem conhece sobre o tema tratado por apresentá-lo nas mesmas roupas de sempre.

Eat my shit!

Mississipi em Chamas (1988)

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Mississipi em Chamas começa com uma cena que parece tão absurda quanto propositalmente ela deve parecer aos olhos de uma pessoa mentalmente saudável: perseguidos e encurralados em uma estrada deserta a noite, três jovens brancos e um negro são cruelmente assassinados dentro do carro em que eles encontravam-se por homens desconhecidos. Nesse primeiro momento, tal absurdo “justifica-se” devido ao preconceito religioso e racial.

O ano é 1964 e o estado é o Mississipi. Kennedy foi morto, Martin Luther King inflama a população negra dos EUA com seus discursos favoráveis a igualdade de direitos civis para negros e brancos e uma guerra civil silenciosa começa a instalar-se no território americano devido as mudanças sociais em curso. Furto de divergências históricas oriundas da Guerra de Secessão, a rivalidade entre os estados do sul e os do norte aumentam nesse período devido a forma como a questão racial é abordada por ambos. Em uma simplificação excessivamente genérica e pragmática, podemos dizer que no sul (onde está localizado o Mississipi), a população cujos antepassados lutaram para defender a escravidão tende a ser mais preconceituosa e radical do que a dos estados do norte.

Voltando aos rapazes mortos no início do filme, ficamos sabendo que tratavam-se de ativistas políticos favoráveis aos direitos dos negros. Os assassinatos passam então de um simples ato  de violência para um crime político e o governo manda os agentes do FBI Rupert Anderson (Gene Hackman) e Alan Ward (Willem Dafoe) para investigar o caso. Estranhamente, os agentes percebem que a população local parece aprovar o crime, no qual eles vêem uma espécie de justiça contra aqueles “rapazes arrogantes do norte que foram até lá dizer com eles deveriam tratar seus negros”. Uma das únicas vozes discordantes, Sra. Pell (Frances McDormand), mulher do chefe de polícia, torna-se peça chave na investigação.

Consigo identificar duas formas bem específicas de assistir Mississipi em Chamas. Visto sem considerar fatores externos, ele é um bom filme de suspense, cheio de clichês do gênero mas ainda sim um bom filme: temos a dupla de protagonistas que briga entre si devido aos métodos da investigação (o velho conflito experiência x juventude), a Klu Klux Klan como inimigo óbvio com suas cruzes em chamas e o homem branco  atuando como salvador dos negros. Aqui entra o “porém” que coloca a bela mensagem de tolerância do filme em jogo.

Missisipi em Chamas diz nas entrelinhas que o governo, ali personalizado naqueles dois agentes do FBI e, de forma geral, nos estados do norte, combateu efusivamente o preconceito racial e que, além do inquestionável empecilho da KKK, foi o conservadorismo da própria população (como se ela fosse algo à parte do governo, como alguns diálogos do filme sugerem) que provocou os conflitos entre negros e brancos. Tal visão não é apenas simplista, é equivocada em uma realidade onde é conhecido o envolvimento do governo no combate a grupos como o Panteras Negras e nas leis que promoviam a segregação racial (isso para não falar nas “teorias da conspiração” que apontam a popularização das drogas nos EUA como uma estratégia do governo de controle social e racial).

A “justiça” do filme do diretor Alan Parker é chamativa e serve como entretenimento, mas como mensagem política falha por tentar tirar dos ombros do governo um peso que a história lhe consagrou.