Entre as década de 50 e 70, Estados Unidos e União Soviética travaram a chamada “corrida espacial”, disputa não declarada na qual as duas nações buscavam o pioneirismo no envio de tripulação e equipamentos para fora do planeta. Como a URSS saiu na frente (lançou o satélite Sputnik I, em 1957, e o soviético Iuri Gagarin foi o primeiro homem a viajar pelo espaço, em 1961), a pressão sobre a NASA para igualar e superar os feitos de seus concorrentes aumentou bastante.
Após lançar o seu próprio satélite (Explorer I, em 1958) e também colocar um homem no espaço (Alan Shepard, em 1961), os EUA, então sob o comando do presidente John F. Kennedy, lançaram um ambicioso plano de enviar astronautas à lua. A história nos conta que esse objetivo foi alcançado em 1969, quando o astronauta Neil Armstrong e sua equipe pousaram a missão Apollo 11 em solo lunar, ocasião que marcou a virada americana na corrida espacial e em que Armstrong proferiu a famosa frase “Este é um pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade”.
Iuri Gagarin, Alan Shepard, Kennedy e Armstrong. A história da corrida espacial, tal qual está registrada, foi protagonizada por homens. Em seus respectivos países, eles foram e são considerados heróis nacionais e é justo que assim o seja, visto os riscos que eles assumiram e a coragem que guiou suas missões, mas eles não chegaram tão longe sozinhos. Também é justo, portanto, que sejam prestadas homenagens àqueles profissionais cujos inestimáveis conhecimentos científicos permitiram que o espaço fosse desbravado, figuras ocultas que trabalharam nos bastidores para que outras pessoas pudessem receber os holofotes. É esse o papel de Estrelas Além do Tempo: democratizar os méritos de um dos episódios mais importantes da história da humanidade e mostrar que a glória daquele momento foi construída por várias mãos, inclusive mãos femininas e negras.
Desde pequena, Katherine G. Johnson (Taraji P. Henson) impressionava os pais e os professores por sua capacidade de compreender e executar cálculos avançados. Seu talento permitiu-lhe formar-se em matemática aos 18 anos de idade e, aos 25, Katherine inscreveu-se e foi selecionada para um programa voltado para mulheres negras da NASA.
Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) comandou o grupo de matemáticas no qual Katherine trabalhou. Dedicada e com aptidão para as tecnologias que estavam sendo desenvolvidas no período, como a computação, Dorothy reivindicou para si o título de supervisora num período onde o racismo ainda estava enraizado nas instituições norte americanas.
Mary Jackson (Janelle Monáe) também trabalhou na NASA como matemática. Interessada na construção de aeronaves experimentais e na análise de túneis de vento, Mary decidiu seguir carreira como engenheira, o que exigiu uma batalha judicial visto que a faculdade do estado não aceitava “alunos de cor”.
Em comum, essas 3 mulheres tiveram a participação no Projeto Mercúrio, programa espacial responsável por colocar o astronauta John Gleen (Glen Powell) em órbita na Terra, em 1962, e que estabeleceu as bases para a conquista da lua no final daquela década. Também em comum, elas tiveram a luta para terem seus trabalhos reconhecidos em um ambiente dominado pelos homens e numa sociedade que media o valor das pessoas com base na cor de suas peles.
Estrelas Além do Tempo, filme do diretor Theodore Melfi baseado em um livro da escritora Margot Lee Shetterly, é um desses longas que apelam para o senso de justiça do espectador para emocionar. Os EUA da década de 60 visavam o futuro e ambicionavam conquistar o espaço, mas aqui, em terra firme, eles ainda amargavam leis retrógradas que segregavam negros e brancos. Mesmo trabalhando para a NASA, Katherine, Dorothy e Mary ficam receosas em serem confundidas com bandidos quando o seu carro quebra na beira da estrada e uma viatura da polícia aproxima-se. Mesmo sendo uma das melhores da sua equipe, Katherine precisa andar quase 2km para usar um banheiro para “pessoas de cor” e não pode usar a cafeteira dos homens e mulheres brancas de seu trabalho. Mesmo realizando trabalho de supervisora, Dorothy não é conhecida como tal e não recebe o mesmo que outras mulheres que ocupam o cargo. Mesmo tendo todas as qualidades e qualificações para tornar-se engenheira, Mary precisa convencer a sociedade que ela tem o mesmo direito de cursar uma faculdade que os brancos. O filme aponta sistematicamente o quão injustas são essas situações e reserva um final feliz para cada uma delas, o que enche a gente de alegria e confiança no poder da perseverança e naquilo que é certo.
Uma das grandezas do roteiro é a multiplicidade de perspectivas abordadas sobre a questão racial. Há os brancos racistas que valem-se da legalidade da segregação para destilarem ódio e inveja contra as personagens (Jim Parsons e Kirsten Dunst), mas também há o branco liberal e progressista (Kevin Costner) e os negros que tanto não reconhecem o seu próprio valor (Mahershala Ali) quanto adotam discursos conformistas e rancorosos (Aldis Hodge). Dessa forma, o filme expõe a ferida do racismo e fala tudo o que precisa falar, mas o faz sem incitar novos conflitos raciais ou de gênero. O roteiro convida à reflexão, e cabe a cada um olhar para a tela e identificar em si mesmo o que precisa ser melhorado.
Ao contrário dos EUA, que buscavam a supremacia na corrida espacial, as protagonistas de Estrelas Além do Tempo não desejam serem superiores a ninguém e nem tampouco obterem vantagens. Elas lutaram por igualdade, e é muito bom saber que elas conseguiram vencer o preconceito e o machismo valendo-se apenas do esforço e do talento (e, no caso da Katherine, de uma gritaria frenética naquele que talvez seja o maior ‘cala a boca’ da história recente do cinema). É bom também que Hollywood tenha atentado-se para o poder de inspiração da trajetória dessas mulheres e tenha dedicado um filme a elas, ajudando assim a tornar seus nomes mais conhecidos para quem (\o) associava viagem à lua apenas ao Neil Armstrong. O filme concorre a 3 Oscars (Melhor Filme, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Atriz Coadjuvante) e, dentre os selecionados, talvez seja o de maior apelo popular.