Estamira (2004)

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Estamira é uma senhora de mais de 60 anos que mora na cidade de Campo Grande-RJ e vive do trabalho de recolher lixo no aterro sanitário conhecido como Gramacho. Diagnosticada como esquizofrênica, Estamira séra fatalmente taxada de doida por qualquer um que conversar com ela: ela grita, xinga, blasfema, filosofa e conversa emitindo sons irreconhecíveis em vários momentos. Através de entrevistas com a família e com a própria Estamira, o diretor Marcos Prado procura compreender o motivo das palavras ásperas e do ódio que ela manifesta constantemente contra Deus. Despida do véu da loucura, Estamira revela-se uma mulher de um raciocínio aguçado amargurada por um passado sombrio.

Não da para negar que em vários momentos o documentário seja hilário. Estamira comporta-se com tanta naturalidade diante da câmera (chegando a tirar a roupa em algumas partes) e subverte tanto o senso comum (prestem atenção na teoria do controle remoto) que é quase impossível não rir. Humoristicamente falando, ela não deve nada para o Jeremias Cabra Ômi e para o o Emílio “Morre Diabo” Eduardo.

Contrastando com esses momentos, está a pobreza, o lixão e a vida triste de Estamira. Levada ainda criança para trabalhar em um bordel, traída pelos dois maridos, assaltada, estuprada e privada da guarda de uma das filhas, Estamira vai progressivamente definhando psicologicamente e desenvolvendo um ódio pelo Deus cristão ao qual ela, em diversos momentos, refere-se como o “trocadilho”, “esperto ao contrário”, caluniador, estuprador, aquele que joga a pedra e esconde a mão. Referindo-se a si mesma como uma “escolhida”, Estamira diz que sua missão é revelar ao mundo as mentiras de Deus, a quem ela atribui a responsabilidade por seu sofrimento e pelos males do mundo.

De todos os ataques que Estamira faz contra Deus e religião (coisas como dizer que a bíblia é papel e que papel aceita ser levado até no banheiro), há um momento particularmente polêmico: quando perguntada pelo neto sobre o motivo de ela odiar Deus, Estamira tem um ataque de fúria e, entre gritos e xingamentos, fica pelada na frente desse neto e mostra pra ele de onde a mãe dele saiu. Literalmente.

Combinando uma excelente fotografia (a cena da tempestade filmada no lixão é nada menos que sublime) e uma boa edição, Estamira é um excelente documentário sobre a mente humana. Por mais perturbada que a velha possa ser, ela defende com uma paixão pouco comum seus pontos de vista e, em sua loucura, acaba vivendo de forma mais consciente do que muita gente. “Tudo que é imaginário tem, existe, é”, diz Estamira. Ta aí algo que vale a pena parar para pensar.

Uma resposta »

  1. O que me chamou a atenção lendo o texto é que a maioria das pessoas que com pobreza derivados da desigualdade social e econômica e com os abusos recorre a Deus, e busca dentro de alguma religião o conforto e a aceitação social através dessa. A Estamira faz exatamente o contrario, talvez por isso o rotulo de louca, acho que no fundo ela esta sendo sincera e assumindo a realidade e o seu modo de vida sem procurar uma fuga, sem tentar se enquadrar.

  2. filme perfeito…
    uma aula de cinema…
    mil vezes mais interessante que o incensado ” lixo extraordinario” que concorreu ao oscar esse ano….

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